terça-feira, 30 de novembro de 2010

Sede assim...

Maio de 2005. Amanhecia
Foto que tirei durante a Marcha Nacional de Goiânia até Brasília.
Andamos mais de 250 km, muita alegria e nenhum incidente
A foto é apenas ilustrativa não tem relação com o conto, a não ser a da maternidade consciente.
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"Sede assim – qualquer coisa serena, isenta, fiel. Flor que se cumpre sem pergunta."
Cecília Meireles
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.Sede assim...
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Sentada num banco da praça Osório, no colo uma sacola. O colo era para o filho e a sacola quase vazia era para ser carregada no braço. O filho ela carregara no braço até o hospital público.
Ele tinha os lábios sem cor e a respiração ofegante, ela chegou a colocar seus lábios nos dele que queimavam de febre tentando ajudá-lo respirar.

Foi atendida por uma enfermeira que, com uma inusitada piedade, tirou a criança dos seus braços e sumiu nos corredores em busca do médico de plantão. Ele chegou. Ela achou-o limpo. Bonito. Tinha uma expressão desolada.
- Onde está meu filho? - ela perguntou aflita.
- Sendo atendido. Há quanto tempo ele está assim?
- Começou hoje, ontem estava um pouco cansado e nem foi jogar bola com os amigos. Não quis jantar, fiz um mingau de aveia e lhe dei uma aspirina. Dorme comigo. Bateu-se um pouco, tirei a temperatura e vim para o ponto do ônibus correndo com dificuldade, apesar de ter apenas 4 anos, ele é pesado. Depois de duas baldeações cheguei aqui. Tão bem atendida. Depois falam mal do SUS.
- Seu nome?
- Maria.
- O do menino?
- João.
- Sente-se.
Ela se sentou obediente, estava em boas mãos.
- Nem sei como lhe dizer...
- Por favor, não diga, me devolva o menino.
- Não há mais o que fazer.
- Claro que há o que fazer. Não estou falando em enterrá-lo. Me dá o menino.

Sentada na ante sala do hospital o menino envolto em lençóis foi colocado em seus braços.
O médico afastou com um piscar de olhos a imagem da Pietá que vira no Vaticano há bem pouco tempo.
- D. Maria, acho que ele está morto.
- Não está – gritou Maria – sem nenhum respeito à autoridade médica.

Saiu pelas ruas com a criança envolta em panos. Sem ter nenhum rumo entrou na Igreja Matriz, silenciosa, quase escura.

Não sabia rezar, não sabia pedir, não sabia nem o que estava fazendo ali. Não olhava o rosto do filho, mas sentia o calor muito forte vindo de seu corpo. Não queria saber se ainda respirava. Não tinha fé, não acreditava em milagres, mas tinha uma intuição que seguia - sem se auto contestar.
Perto da porta de entrada tinha uma grande pia batismal cheia de água, possivelmente cheia de germes talvez com óvulos da dengue.
Foi até lá devagar, tirou os panos do menino e afundou-o naquela água. Fria. Sentiu que ele estremeceu. Deixou-o ali até que os olhinhos do menino se abriram. Enrolou-o de novo nos panos e voltou para o hospital.
O plantonista estava logo na entrada.
- Doutor, a febre cedeu, agora cuide dele, por favor.
- D. Maria, foi um milagre!!
- Não foi, doutor foi apenas um banho frio.
O médico colocou o menino com cuidado em uma maca e desapareceu no corredor.
Ela foi para o banco da praça. "Serena, isenta, fiel, flor que se cumpre sem pergunta".
A noite caia e ela ficaria ali para levar de volta o menino saudável para casa. Ninguém iria assaltá-la. Tinha certeza.

Nédier


domingo, 28 de novembro de 2010

Salta aos olhos

" Missão dada, missão cumprida."
(sub-título do filme "Tropa de Elite 2")

Durante décadas assistimos os governos fecharem os olhos para um problema gravíssimo que saltava aos olhos de todos.
Bastou que fosse decidido que o Brasil sediaria as próximas Olimpíadas para que fosse montada esta farsa burlesca de desalojar os traficantes e criminosos das favelas onde toda a população sabia que estavam sediados.

Os jornalistas excitados buscam imagens dantescas que talvez lhes traga o prêmio de jornalista do ano. A mídia enlouquecida parece vibrar com todos estes fatos que dão audiência, que fazem o IBOPE subir e a imprensa faturar.

Precisava uma Olímpiada para que fossem tomadas estas medidas drásticas? Precisava que a situação se tornasse drástica?
As próprias imagens que vemos, os comentários que ouvimos, a exibição da força que o Brasil possui só demonstra que sempre tivemos recursos para amenizar, em parte, pois o problema é mundial, o tráfico das drogas.
Penso que assim é mais cinematográfico, embora diferente dos filmes, pessoas são mortas. Não são figurantes e o Capitão Nascimento é apenas um personagem que no filme, por motivos políticos, foi expulso da polícia.

(No excelente filme "Tropa de Elite 2" assistimos fatos que já sabíamos, mas que nos surpreenderam por terem sido expostos em uma gigantesca tela: - o envolvimento dos políticos no tráfico de drogas. Sem comentários.)

Enquanto isso, aqui no Paraná, fatos gravíssimo envolvendo o Judiciário ficam em segundo plano diante da parafernália montada pelas Forças Armadas para invadir o Morro do Alemão.


Salta aos olhos

Publicado em 27/11/2010 Rogério Waldrigues Galindo • rgalindo@gazetadopovo.com.br
Existem ilegalidades. E existem ilegalidades que “saltam aos olhos”. De acordo com o conselheiro Walter Nunes, do Conselho Nacional de Justiça, os problemas encontrados no Tribunal de Justiça do Paraná são do segundo tipo. Foi exatamente isso que ele escreveu no seu voto apresentado em sessão nesta semana. “A ilegalidade da forma de execução do Acordo de Cooperação Técnica firmado entre o Poder Judiciário do Estado do Paraná e o Banco Itaú/Banestado S/A salta aos olhos, principalmente porque se verifica burla à exigência de licitação para contratações públicas”, diz o texto.

Conforme a Gazeta noticiou na quarta-feira, o pleno do CNJ concordou com o voto do conselheiro. Ordenou que o tribunal paranaense retire do Itaú todo o dinheiro de depósitos judiciais que mantém lá. E determinou a abertura de uma sindicância para saber quem foi culpado pela “série de irregularidades” encontradas até o momento. Mas quais são essas ilegalidades? Segundo o voto do conselheiro, agora disponível na íntegra na internet, são várias.

A principal delas é justamente o que ele chama de “burla à exigência de licitação”. Ou seja, os rendimentos do dinheiro mantido pelo TJ no Itaú eram usados para fazer compras – obras, inclusive. Não se está falando aqui de quantias pequenas. Durante um bom tempo, todos os depósitos judiciais do TJ paravam lá. Para se ter uma ideia, o contrato determinava dois tipos de rendimento para a conta. Um deles só acontecia quando o saldo médio da conta ultrapassava R$ 300 milhões.

O problema é que o TJ entendia que o rendimento desse dinheiro não precisava seguir a regra que, pela lei, vale para todo gasto público. E as compras passaram a ser feitas pelo próprio Itaú, a mando do tribunal, sem que se fizessem licitações. Em seis anos, de 2001 a 2006, segundo o CNJ, mais de R$ 39 milhões foram gastos assim.

Walter Nunes critica inclusive o que, segundo ele, seria um jeito de disfarçar que as compras eram feitas com dinheiro do tribunal. Ao invés de retirar o dinheiro e fazer a compra, o TJ enviava correspondências ao banco perguntando se seria possível o Itaú fazer tal ou qual compra. Como não se tratasse de uso do dinheiro da conta – algo que estaria mais para um suposto patrocínio.

A lista de compras é outro problema apontado por Nunes. O maior espanto do conselheiro diz respeito à contratação de uma empresa para fiscalizar a obra do Anexo do TJ. A empresa, paga sem licitação, foi a que ofereceu maior preço e era a mesma que havia sido responsável pelo projeto do prédio. A obra de R$ 48 milhões do anexo, aliás, está sendo investigada pelo mesmo Walter Nunes neste momento.

Mas a lista é bem maior. E en­­­­tram nela itens curiosos. Como, por exemplo, um lote de canecas comemorativas com o nome do presidente do TJ da época gravadas em dourado; uma série de “obras sacras, casulas, túnicas, amitos, estolas e incensário”; e duas placas de bronze, “uma do Museu da Justiça, ainda não afixada, e outra exposta no Centro de Educação Infantil Maria José Coutinho Camargo, ambas confeccionadas em homenagem à esposa do mesmo presidente acima referido”.

Detalhe: parte dos objetos comprados não foi encontrada no tribunal. O CNJ questionou e a resposta foi que houve empréstimo ou doação.

Mas Walter Nunes pergunta porque o TJ deveria comprar algo que não fosse necessário à Justiça .

Eu me pergunto se chegaremos a uma situação em que fatos externos e aleatórios façam com que a "Tropa de Elite" precise invadir o "Judiciário" para mostrar para o mundo que somos um país sério, contrariando a frase atribuida a Charles de Gaulle.

Nédier

- Dedico esta postagem ao meu amigo João Carlos Caescaes. Um homem digno.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

- O que aconteceu com Jurema? – uma homenagem à minha avó materna.

Aline de Souza Picheth, minha avó, mulher inigualável em sua época. Ficou viúva ainda jovem. Duas vezes. Criou sozinha seis filhos, apenas com o salário do magistério. Muita pobreza e um compromisso rígido com a educação. Obrigava, nós, seus netos, desde pequenos a ouvi-la ler o jornal inteiro, enquanto fumava seu palheiro (que desaconselhava). Só o estudo dignifica, era seu lema. Nunca entendi e acho que nem concordo.
Viajava para o Rio, Buenos Áries em tempos que as mulheres só saíam de casa para a missa, compras e festas de família. Teria sido uma ótima política, não perdia oportunidades e era autoritária.
Odiava o serviço doméstico, não lembro de vê-la perto do fogão, mas lembro de vê-la a tarde toda, com a maior má vontade, lavando (mal) a louça do almoço. Trabalho feito em prestações, interrompidas por um cigarrinho.
Morreu com a minha idade e cinqüenta anos de prática de magistério.
A escola estadual do bairro do Ahu onde moro em Curitiba, leva seu nome.
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- O que aconteceu com Jurema?

Abriu a porta, a soleira, uma moldura velha e descascada, parecia feita para um homem como ele. Ar cansado, rosto cheio de pó, cabelo sem corte e sem brilho, um terno grande despencando nos seus ombros.
Entrou na sala-cozinha. Uma mesa no centro, um fogão, um armário de louça, uma pequena poltrona e um rádio pousado sobre uma toalhinha bordada, em uma prateleira exclusiva para ele. As portas de entrada, do banheiro, do quarto e uma janela compunham aquele lugar descorado e poeirento.
O homem sentou numa cadeira, sem cuidado, o peso do seu corpo pareceu, por instantes, que ia desmontar a cadeira.

Sobre a mesa a carta.
Leu em voz alta.
“Raimundo, vou passar uns tempos na chácara da tia Mariquinha, não sei quando volto. Não sei se volto”.
Não tinha assinatura.

Suspirou fundo, mal teve tempo de assimilar a notícia, pancadas na porta.
- É o Juraci.
Sem mudar a expressão disse em voz alta:
- Entre!
Entra o Juraci, esfregando as mãos.
- Mundo, sou teu amigo há mais de 20 anos. A gente sempre foi sincero. Não dá mais pra agüentar.
- Se for falar da Jurema, já sei, não se preocupe, conheço a mulher. A vizinhança conhece. Sei que ela não saia do teu pé, que ia à tua casa quando eu viajava. Ela é bonitinha, não culpo você não resistir. Eu não a agüento já faz tempo. Ela facilitou. Leia a carta.
Leu.
- Pois é cara, ela queria fugir comigo, disse que tem umas economias que dava pra gente se estabelecer em outro lugar. Acabei de dizer pra ela que não sou louco, que estava me sentindo muito mal por tua causa e mandei-a se arrancar.

Pingos de água caíam sobre a mesa. O Raimundo, sem muita convicção, afastando a carta de perto da água, falou:
- Ta furado, é preciso consertar.
- Vamos sair cara, até o snooker, tomar umas. Pode ser que a gente possa conversar.
- Não tem mais o que conversar, vamos.
Saíram e apagaram a luz.

Som de passos apressados, uma mão surgiu no desvão da porta e acendeu a luz.
Morena, baixinha, de vestido justo e estampado e cabelos soltos até o ombro. Jurema. O rimel borrado e a pintura meio desfeita mostravam que ela havia chorado. Seu rosto mudou de expressão ao ver a carta sobre a mesa.
Pegou-a rapidamente e rasgou-a em picadinhos e jogou na lixeira.
- Ele ainda não chegou – falou pra si mesma, com um ar alívio. Uma alegria inesperada compôs seu rosto.

As cortinas de veludo azul desbotado se fecharam. Tambores e uma voz grave anunciaram:
- Fim do primeiro ato.


Nas molengas arquibancadas de madeira do Circo Teatro Áurea, umas vinte pessoas desacomodadas, tentavam achar um lugar sem goteiras. A chuva forte caia sobre o toldo furado e já encharcava a serragem do chão.

Minha avó de taileur preto, de cabelos presos num coque e com um pó de arroz mais claro que sua pele, tinha uma postura de realeza. Mesmo sentada naquelas tábuas velhas, com uma neta de cada lado lembrava à rainha mãe, à rainha avó. Uma rainha. Ela prometera nos levar ao circo teatro e lá estávamos. A Liane e eu. Ela nos olhou e perguntou tranqüila:
- Acho que eles vão suspender. Não sobrou mais ninguém, estão todos indo embora. Querem ficar?
Queríamos. Ficamos.

Não lembro dos dois atos que foram representados apenas para nós três.
Só lembro do som da chuva, do colorido das roupas e da maquiagem exagerada dos personagens.
A casa de minha avó ficava bem perto do circo. Quando saímos a chuva passara e brilhavam umas tímidas estrelinhas no céu.

Nédier
- Dedico esta postagem à minha querida prima Liane com quem me criei como irmã. Não conheço ninguém mais gentil, doce e educada do que ela. Amo-a e admiro-a MUITO.

domingo, 14 de novembro de 2010

Sobre a dor, em um intervalo.

Desenho feito por mim, com uma caneta esferográfica, tentando transferir a dor para o papel...
O desenho é tão feio como a dor



No meu corpo saudável a energia fluía como um rio de planície. Eu chegava a sentir o prazer das correntes levando vida à flor da pele.
Era normal ser feliz comi
go mesma, as pequenas dores eram como desvios rapidamente superados.

Então foi como se uma barreira fosse colocada no percurso e minha energia fosse estancada de forma violenta. Uma fisgada na perna, outra mais forte.
A esta energia que não consegue fluir é que chamamos dor.

A pressão da água em um cano entupido pode rebentá-lo. Penso assim sobre a minha dor: um encanamento prestes a rebentar.
O bloqueio pode ser mecânico, patológico, pode ser provocado por um ferimento, uma fratura, inflamação, distensão, por tantas grandes ou pequenas coisas.

É um aviso do corpo de que algo não está como devia estar, é uma defesa é um mecanismo de preservação da vida. É um alerta. E daí? Não podíamos receber este alerta por e-mail...?

As dores são emocionais. Não dá pra pensar direito. É difícil amar o próximo quando odiamos a nós mesmos, porque a dor e as suas conseqüentes limitações tornam o corpo um fardo indesejado e incompreendido.
A dor também pode ser produto de emoções negativas que somatizamos.
Ela é pessoal, intransferível e imesurável.
A dor que sentimos é a pior de todas, não nos alivia, nem consola saber que milhares de pessoas sofrem dores terríveis, ininterruptas, mais poderosas que todos os analgésicos do mundo.

De repente a dor dá uma trégua, não sei de felicidade maior, aquele restinho de dor que vai se esvaindo é puro prazer. Não importa que ela vá voltar, importa é sentir o corpo livre dela. A falta da dor faz valorizarmos algo nunca valorizado o suficiente. A ventura quotidiana de estarmos vivos e saudáveis. Uma ventura elementar
como disse Helena Kolody de “estar ao sol, viva e sem dor”
Nédier

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

As quatro leis da Espiritualidade na India


Na Índia se ensina as
"Quatro Leis da Espiritualidade"
.
A Primeira Lei diz:
" A pessoa que chega
é a pessoa certa ".
Significa que nada ocorre
em nossas vidas por casualidade.
Todas as pessoas que nos rodeiam,
que interagem conosco,
estão ali por uma razão,
para possamos aprender e
evoluir em cada situação.
A Segunda Lei diz:
« O que aconteceu é a única coisa
que poderia ter acontecido. »
Nada, absolutamente nada que
ocorre em nossas vidas
poderia ter sido de outra maneira.
Nem mesmo o detalhe mais insignificante!
Não existe: "se acontecesse tal coisa, talvez pudesse ter sido diferente...". Não!
O que ocorreu foi a única coisa que
poderia ter ocorrido e teve que ser assim
para que pudéssemos aprender essa lição
e então seguir adiante.
Todas e cada uma das situações que ocorrem em nossas vidas são perfeitas,
mesmo que nossa mente e nosso ego
resistam em aceitá-las.
A Terceira Lei diz:
« Qualquer momento
que algo se inicia,
é o momento certo. »
Tudo começa num momento determinado.
Nem antes, nem depois!
Quando estamos preparados para que
algo novo aconteça em nossas vidas,
então será aí que terá início!
A Quarta e
Última Lei diz:
« Quando algo
termina, termina! »
Simplesmente assim!
Se algo terminou
em nossas vidas,
é para nossa evolução!
Portanto
é melhor desapegar, erguer a cabeça e
seguir adiante, enriquecidos com mais essa experiência!

Creio que não é por acaso que você está lendo isto.
Se este texto chega até nós hoje
é porque estamos preparados
para entender que nenhum grão de areia,
em momento algum,
cai em lugar errado!!!


Viva Bem! Ama com todo o seu Ser!
E permita-se ser Imensamente Feliz!


Meus amigos,

Recebi este belíssimo texto e estas imagens fantásticas - em forma de um pps. - da Advogada Valéria da Silveira Müller, minha nora. Não resisti e quis compartilhar com vocês.

Beijo,

Nédier


sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Pablo Neruda.- Canto Geral V

Pablo Neruda, nascido e falecido no Chile (Parral, 1904 - Santiago, 1973) foi uma das vozes mais altas da poesia mundial dos nossos tempos. Desde o combate direto ou desde a perseguição e o exílio valorosamente encarados, a tragetória do poeta que obteve em 1971 o Prêmio Nobel de Literatura, configura, simultaneamente com a evolução de um intelectual militante, uma das mais expressivas da lírica em língua castelhana, amparada no poder inigualável, que da indiscriminada imersão no mundo das forças telúricas originárias se expandiu na fusão com o âmbito natal americano e soube cantar o instante amoroso que contém o cosmos, o tempo obscuro da da opressão e o tempo aceso da luta. Uma visão que abarca simultaneamente a vastidão dos seres e o abismo interior da lingugem: poeta total, Neruda já pertence à tradição mais viva da nossa maior poesia,
(da contracapa do livro Canto Geral, 8 ª. Edição, 1979).
Canto Geral é a obra mais política do poeta. O Capítulo V: Areia Traida e demais poesias retratam o submundo dos traidores, ditadores e lacaios.
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A Areia Traída

Talvez, talvez o olvido sobre a terra como uma capa
possa desenvolver o crescimento e alimentar a vida
(pode ser) como o húmus sombrio no bosque.

Talvez, talvez o homem como um ferreiro acode
à brasa, aos golpes do ferro sobre o ferro,
sem entrar nas cegas cidades do carvão.
sem fechar os olhos, precipitar-se abaixo
em fundições, águas minerais, catástrofes.
Talvez, porém meu prato é outro, meu alimento é diverso:
meus olhos não vieram para morder olvido:
meus lábios se abrem sobre todo o tempo, e todo o tempo
não só uma parte do tempo gastou as minhas mãos.
Por isso te falarei destas dores que quisera afastar,
te obrigarei a viver uma vez mais entre suas queimaduras,
não para nos determos como numa estação, ao partir,
nem tampouco para golpear com o rosto a terra .
nem para enchermos o coração de água salgada,
mas para caminhar conhecendo, para tocar a retidão
com decisões infinitamente carregadas de sentido,
para que a severidade seja uma condição da alegria, para
que assim sejamos invencíveis.

Y Love You Baby

I love you baby

Dilma é uma Ninotchka e tende a despertar pouco afeto. Mas sua dureza amolece quando a imaginamos, guria ainda, com nome falso, de aparelho em aparelho dos movimentos revolucionários. Ou sob 22 impiedosos dias de tortura

Publicado em 05/11/2010 jcfernandes@gazetadopovo.com.br

Não lembro ao certo quando entendi o que era uma guerrilheira – mas a primeira imagem que me vem à mente é a de Eva Wilma, na novela Roda de Fogo, de 1986, escorregando pela parede ao reencontrar seu torturador, vivido por Cláudio Curi, o enojante Jacinto. A cena é um clássico e deve ter sido a primeira exposição, num produto de massa, dessa figura a qual poucos tributos prestamos e que, se bobear, até chamamos de bandidas.

As guerrilheiras, aliás, custaram a dizer seus nomes, por motivos que só vim a entender anos depois, ao ler Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf Carvalho. Aquelas que desceram aos infernos da ditadura não experimentaram apenas os kilowatts de potência da tortura, mas também o estupro – jovens, estudadas e bem-nascidas, pagavam um extra a seus algozes. Naturalmente, precisaram de muito tempo para conseguir tocar no assunto.
·
Uma das poucas notícias frescas que recebemos sobre o que aconteceu veio de forma velada, em 1989, no docudrama Que bom te ver viva, da ex-guerrilheira Lúcia Murat, estrelado por uma verborrágica Irene Ravache. Ela não conta tudo – pois não consegue –, mas dá a entender. Nossas guerrilheiras, em suma, não tiveram as glórias de Célia Sanchez – a companheira de Fidel Castro – e pagaram muito caro por suas escolhas. Não raro, as memórias do chumbo as fazem descer pelas paredes, quando não a se atirarem debaixo de trens. Pois é.

No final da década de 1990, estreou com alarde o longa-metragem O que é isso companheiro?, baseado em obra homônima de Fernando Gabeira. O livro trata do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, no Rio de Janeiro, em 1969. Gabeira, sabe-se, arquivou seu passado de guerrilha, entendendo-o como um episódio chauvinista e reacionário que só lhe serviu para puxar nove anos de cana no exílio. Preferiu o desbunde nas Dunas da Gal, em Ipanema, esse sim revolucionário, como expressou em outro livro, O crepúsculo do macho.
Gosto dos dois textos. Mas confesso que me senti desconfortável em ver os humoristas Pedro Cardoso, Luiz Fernando Gui­­­marães e Fernanda Torres encabeçando a versão em filme. Fiquei arara – os paladinos da minha infância tinham virado paspalhos ingênuos do TV Pirata. Vera Sílvia, a guerrilheira a quem Fernanda representava, se converte em uma bolchevique tapada que tomava um inocente beijo do rosto por um atentado pequeno burguês.
Por aquela época, andava pelo Brasil o escritor chileno António Skármeta, autor da obra que inspirou O carteiro e o poeta. Branquelo, gorducho e suarento, ele estrebuchou numa coletiva, perguntando como podíamos fazer troça dos jovens que deram a vida pela democracia. Até hoje não sei se essa amnésia tropical é pouco-caso ou estratégia de sobrevivência diante de nossa extensa folha corrida de censuras e ultraje de direitos.
Procuro em antropólogos e sociólogos a resposta. Enquanto não encontro, permaneço a postos com minha paixão adolescente pelas revolucionárias. Nutro saudade do que não vivi e confesso que gostaria de ter estado lá, com elas. Por isso, resisto em meu aparelho de faz de conta.
À Vera Sílvia de Fernanda Tor­­res prefiro a Heloísa de Cláudia Abreu na minissérie Anos Re­­­beldes, por quem choro a cada vez que escuto Can’t take my eyes of you (“I love you ba­­by”). Con­­tinuo achando o encontro entre Carlos Lamarca e Iara Yavelberg o nosso romance mais arretado. Turrão, tomo por heresia Ivete Sangalo cantando as guerrilheiras de “Soy loco por ti América”. Peço a Deus para não esquecer os feitos de gente como Maria Regina de Figuei­­­redo e da nossa Teresa Urban. E, juro, se um dia encontrar Eva Wilma, direi que a torturada Maura Garcez é muito melhor que suas Mulheres de areia.Quanto a Dilma – uma vez Estela, Wanda, Maria Lúcia, Marina ou Luíza, seus nomes de guerra no Polop, Colina ou VAR Palmares – entendo que a guerrilha é de longe o seu melhor. Imagino-a como um personagem de Os Carbonários, de Sirkis, um daqueles livros que amei. Relaxo.

Depois cantarolo “I love you baby” e só me resta dizer “que bom te ver viva”.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

500 anos esta noite - Pedro Tierra

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500 anos esta noite

Pedro Tierra


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De onde vem essa mulher

que bate à nossa porta 500 anos depois?

Reconheço esse rosto estampado

em pano e bandeiras e lhes digo:

vem da madrugada que acendemos

no coração da noite.
De onde vem essa mulher

que bate às portas do país dos patriarcas

em nome dos que estavam famintos

e agora têm pão e trabalho?

Reconheço esse rosto e lhes digo:

vem dos rios subterrâneos da esperança,

que fecundaram o trigo e fermentaram o pão.

De onde vem essa mulher
que apedrejam, mas não se detém,

protegida pelas mãos aflitas dos pobres

que invadiram os espaços de mando?

Reconheço esse rosto e lhes digo:

vem do lado esquerdo do peito.

Por minha boca de clamores e silêncios

ecoe a voz da geração insubmissa

para contar sob sol da praça

aos que nasceram e aos que nascerão

de onde vem essa mulher.

Que rosto tem, que sonhos traz?

Não me falte agora a palavra que retive

ou que iludiu a fúria dos carrascos

durante o tempo sombrio

que nos coube combater.

Filha do espanto e da indignação,

filha da liberdade e da coragem,

recortado o rosto e o riso como centelha:

metal e flor, madeira e memória.

No continente de esporas de prata

e rebenque, o sonho dissolve a treva espessa,

recolhe os cambaus, a brutalidade, o pelourinho,

afasta a força que sufoca e silencia

séculos de alcova, estupro e tirania

e lança luz sobre o rosto dessa mulher

que bate às portas do nosso coração.


As mãos do metalúrgico,

as mãos da multidão inumerável

moldaram na doçura do barro

e no metal oculto dos sonhos

a vontade e a têmpera

para disputar o país.


Dilma se aparta da luz

que esculpiu seu rosto

ante os olhos da multidão

para disputar o país,

para governar o país.

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Brasília, 31 de outubro de 2010.
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Recebi este lindo poema do meu amigo, o advogado Roberto Firmino.
Nédier