quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Círculo Viciado - Maria Helena Bandeira

Imagem: Siegfried Zademack
.

Círculo Viciado
.

Maria Helena Bandeira*

.


Fechou o livro e olhou para o parque.
Entardecia. Uma bruma delicada subia da relva, esgarçando-se nas folhas da cerca viva. O sol descia suavemente atrás das árvores.
Estrelas começavam a surgir, quando respondeu:
- É apenas um livro idiota, um romance sobre uma jovem aristocrata e o namorado pobre.
Ele sorriu irônico e segurou o livro com cuidado, como se pegasse fogo.
Agastada, ela correu para a porta de casa, os sapatinhos macios magoando-se nos espinhos. Correu atrás dela, prendeu seus braços e a beijou. Ela então......
.
*******
.
- O que está lendo aí?Assustada, largou o livro e deixou cair o marcador de couro verde. Por trás do sofá de couro, ele tentava ver o título, enquanto ela chutava o pobre para baixo da mesa. O rapaz pulou em direção ao volume. Lutaram durante alguns segundos, até que a jovem, vencida, deixou que ele pegasse a presa.
- Memórias de Cantervillle - confissões de uma milionária. Desde quando você lê estas coisas?
- Desde quando me dá vontade. Leio o que me interessa e você não vai querer agora tomar conta das minhas leituras, como tenta fazer com os pensamentos.
Ele deixou cair o livro, aborrecido.
- Não regulo suas leituras, muito menos seus pensamentos, fiz apenas um comentário sem maldade.
- E eu estou cansada deste tipo de observação casual que se destina a me policiar...
Tentou conter a ira, se aproximou dela, mas continuava aborrecida.Jogando o livro longe, se atirou na poltrona e ligou a televisão......
.
************
.
Quando ele enfiou a chave na porta, tive que parar a leitura e esconder o livro.
Como explicar que preferia ler sobre relacionamentos à especulação filosófica?
Fingi que acendia um incenso. O perfume delicado inundou o pequeno conjugado.
Apanhei a Suma Teológica. Quando ele me beijou, cheirava à cebola. Representei estar apaixonada, segurei seu rosto e o coloquei entre meus seios.
Ele tentou abrir a blusa, aleguei dor de cabeça, pedi uma massagem tântrica.
Retirei a coberta de seda e deitei no sofá esfiapado.
Delicadamente, começou a manipular minha coluna maltratada. Pensei nos personagens do livro e refleti:
- É um bom homem, apesar de tudo.Mas era muito pouco para mim.Ele se levantou, de repente, irritado, diferente, não entendi o que acontecia......
.
*********
.
- Livro de papel ? Menina, onde encontrou?
Você larga a leitura e responde depressa: no depósito de lixo, ia usar para acender o fogão. O carvão acabou.
Seu homem olha interessado para o livro, tenta folhear algumas páginas, ler o entediava.
Seu homem é viciado em programação neural, nunca entenderia a graça de ficar horas apenas imaginando, sem vivenciar, catando letras numa folha amarelada.Você sabe que é absurdo, antiquado, irreal.
Mas no momento, tudo se tornou antiquado e irreal, quando você só dispõe de uma caldeira velha, um fogão do século passado e as ruínas de uma casa para se abrigar da chuva ácida.
Ele joga o livro no fogo e seu coração sangra enquanto você vê as páginas retorcidas sendo destruídas. Onde achará outro livro de papel?
Seu homem junta as mãos diante de fogo e profetiza:
- Amanhã vai fazer muito mais frio do que hoje.....
.
************
.
- Você ainda lê estas bobagens de Ficção Científica? Veja só, ninguém previu este calor infernal que estamos vivendo.
Olhei para ele:
- Estamos vivendo?

.
.
*Maria Helena Bandeira é uma escritora carioca, das melhores.
Este texto está no seu blog, que é lindo e deve ser visitado. Além de textos como este, estão poesias de sua autoria e outras, dos melhores poetas como Pessoa, Cecília Meireles, Jorge Luiz Borges
.
.

Por Universos Nunca Dantes Navegados

“Nós sonhamos o mundo”

Jorge Luis Borges

Antologia

Ficção Científica luso-brasileira lançada no
Fórum Fantástico em Lisboa dia 8 de novembro

AUTORES


Luís Filipe Silva, Introdução: O Estranho Caso da Prospectória Amnésica
João Ventura, Resíduos Sólidos Urbanos
Wolmyr Alcantara, OberonYves
Robert, Fome de Pássaro
Octavio Aragão, Para Tudo se Acabar na Quarta Feira
Jorge Candeias, Littleton
Gabriel Boz, Digital Éden
Telmo Marçal, O Pico de Hubert
Carlos Orsi, Disse a Profetisa
João Ventura, Assassinos de Sobreiros
Carlos Patati, A Irmandade
Sofia Vilarigues, O Nevoeiro que Desvendou Realidades
Maria Helena Bandeira, Ponte Frágil Sobre o Nada
António & Jorge Candeias, Deus das Gaivotas
Carla Cristina Pereira, Xochiquetzal em Cuzco – Uma Princesa Asteca no Reino dos Incas
Prefácio – Luís Filipe Silva
.
.
Conteúdo onde encontrar e onde comprar:
http://universos.tecnofantasia.com/cgi-bin/tfmaint.cgi

terça-feira, 20 de novembro de 2007

POR QUE NÃO SE CALA - Rosane Coelho

POR QUE NÃO SE CALA
.
a prepotência
dos que pretendem
ao mundo impor sua fala?
.
.
imagem: instalação de arte no museu judaico de berlim (maria josé amorim)

Rosane Coelho
.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Aprendi desde criança que mandar alguém calar a boca é falta de educação.


Sem linha telefônica e com um rei atravessado na garganta...


Logo hoje que eu acordei inspirada em "tecer considerações" sobre o golpe militar comemorado nesta data - também chamado de Proclamação da República, a linha telefônica do meu computador ficou muda e fora da banda larga.
Acabam de ser restauradas.

Res publica significa coisa do povo. Na res publica de 15 de novembro o povo não
participou e continua sem participar até hoje. Assiste aos mandos e desmandos e, com uma inacreditável resignação diante das tragédias, declara para as câmaras da Globo:
- Foi a vontade de Deus!!
- Se Deus quiser vamos dar um jeito.
Como se o Deus deles fosse um sádico.

Ah! E eu também queria escrever sobre aquele rei arrogante, criado pelo sanguinário Franco, a quem os espanhóis, e os só não espanhóis, como minha brasileiríssima filha Ana, adoram de paixão.

Peço antecipadas desculpas aos espanhóis da minha família: neta, genro e
seus pais, pessoas que amo e amo muito, mas escrevo o que penso ser justo.

- Já não basta terem saqueado como piratas o ouro do novo continente?
- Não se envergonham de terem dizimado culturas com a, dos incas com
crueldade?

Atualmente, eles compram, com a empáfia dos capitalistas, os nossos melhores jogadores de futebol. Mas se os “nossos ídolos” se vendem, nada podemos argumentar.

Talvez seja necessário comentar que a presença econômica espanhola anda ocasionando um crescente mal-estar na América Latina. É um fato.

- Mas sermos tratados como súditos é indesculpável!

Precisamos explicar aos espanhóis que, apesar de ter sido através de golpe
militar, somos uma República desde 1889 – e que já não existem monarquias
na América Latina.

- Entonces, Juanito? Porque não manda calar a boca de alguns bascos?
Faça o que bem entender dentro dos limites do seu poder mas, por favor,
como diria o Chico Buarque, com mais poesia e elegância:
- Afasta de mim este Cale-se!!!

Para quem foi criado com uma educação primorosa, como eu pensava até
então, o Juan comportou-se na 17ª Cúpula Ibero-Americana como um “rei” mal-educado, prepotente e preconceituoso. Ordenou a um Presidente da República, eleito pelo povo, que se calasse porque o mesmo se referiu ao seu ex-ministro Aznar, como um fascista, o que ele, reconhecidamente, é.
Para quem não sabe, Aznar deu ordens ao embaixador da Espanha em Caracas para que apoiasse o golpe contra Cháves em 2002.
- Será que o rei da Espanha queria que Cháves tecesse elogios à Aznar? Ou que não se referisse a este episódio que envergonha a democracia?

Lá do fundo do inferno, o generalíssimo Franco deve estar se sentindo
orgulhoso!!!

Nédier

sábado, 10 de novembro de 2007

Poema em Linha Reta - Fernando Pessoa/Álvaro Campos

POEMA EM LINHA RETA
.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
.
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
.
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
.
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
.
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
.

Foto do poeta na juventude.
.
Dedico esta página à Marisa Giglio, uma mulher sensível que faz pps.s maravilhosos e que me mandou este poema, sem imaginar que ele é um dos que mais amo entre os tantos do Fernando Pessoa