“Não há destruição maior do que a morte da memória.”
“TODOS SABIAM”
"A morte anunciada do Padre Josimo”
Eu tinha terminado de ler “TODOS SABIAM” de Binka Le Breton e resolvi escanear a foto do Josimo, que está na contracapa, para colocar no meu arquivo fotográfico da Comissão Pastoral da Terra. Tentava colocar um fundo colorido na imagem do Josimo e olhando na tela do meu computador aquele rosto jovem e mulato, tive uma forte impressão que já o conhecia.
Estava chovendo.
Uma brisa leve entrou pela janela e trouxe um perfume de mato e de terra molhada. Olhei de novo a foto e - como explicar - senti a presença viva e vibrante do Padre Josimo.
A memória olfativa de tempos que eu não vivi impregnou minha mente com um cheiro do pó das estradas, de sandálias de couro cru, de roupas rústicas suadas de calor e de cansaço. Vi-o em frente à primeira manifestação dos trabalhadores rurais que ele tinha organizado. Ouvi sua voz falando à multidão que se reunira em procissão até a praça principal:
- Vocês estão vendo o homem que está em pé ali? Bem ele é o delegado. Aqueles homens perto dele são pistoleiros e eu quero que vocês dêem uma boa olhada neles. Eles estão aqui para nos assustar!
Era o início de seu fim. O início de uma morte anunciada que acabou acontecendo enquanto ele subia os degraus da escada do escritório da Comissão Pastoral da Terra - que coordenava na Diocese de Tocantinópois.
Ia apressado para continuar seu trabalho. Um trabalho contra a injustiça social, contra o “o latifúndio, a polícia, as oligarquias que ainda continuam mandando, ao se completar 500 anos de colonização”. Um trabalho que tinha, e tem, que ser reiniciado todas as manhãs. Ele já escapara de um primeiro atentado e sabia que olhos da morte o espreitavam, mas não se acovardou e prosseguiu.
Era véspera do Dia das Mães, 10 de maio de 1986. Estava no meio da escada quando sentiu o impacto de fogo no peito e viu o sangue brotar em sua camisa. Amparo e Perpétua, duas mulheres que o auxiliavam em seu trabalho ampararam o seu corpo que se desprendeu de uma cruz que ele mesmo construíra com audácia e destemor.
- Mataram Josimo!
Estas palavras foram pronunciadas com imensa dor pelos homens, mulheres e crianças pelos quais ele morreu. Mas com grande alegria e alívio pelos que
desejavam a sua morte pois ele os ameaçava só por existir e lutar para que a TERRA ficasse nas mãos calejadas dos seus verdadeiros donos. Dos que a tornam fértil e produtiva. Dos que sabem que ela é fonte de vida.
Olhei de novo sua foto no monitor e vi que o conhecia, não porque tinha acabado de ler sobre a sua vida, mas porque, de certa forma, ele continuava vivo dentro de mim. Nascera de uma semente plantada por um tiro certeiro que também se alojara no meu peito. Pousei as minhas mãos brancas e sem calos sobre o teclado do computador e fiquei olhando a foto de Josimo ampliada na tela luminosa. Então, falei baixinho:
- Ô, Josimo não posso deixá-lo num arquivo, é preciso que outras pessoas saibam que você viveu e lutou pelos direitos do homem do campo, dos que aram a terra, semeiam e colhem seus frutos para alimentar esta nação. Vou querer que outras pessoas vejam seu rosto e queiram conhecer sua história. É preciso que saibam que você está vivo e que embora continue sendo assassinado em muitos cantos deste país, encharcando esta terra de sangue, você renasce todos os dias.
Não vou contar a história do Padre Josimo, ela já foi bem contada neste livro, TODOS SABIAM escrito, incrivelmente, por uma inglesa, Binka Le Breton. Procurem ler. Escrevo sobre ele neste sítio para reverenciar sua memória.
Depois de ler este livro lindo, eu me senti na obrigação de recomendá-lo para os meus amigos, é o que faço agora...
Pois, como escreveu D. Tomás Balduíno, se referindo ao “TODOS SABIAM”...
“...o que faz a beleza desta obra é a beleza mesma de Josimo. É sobretudo, a beleza deste povo extraordinário de homens e mulheres do sertão, marcados para morrer, mas que sempre ressuscitam e vivem."
Josimo, vivo, no meu coração, continua a sua missão, mas a criação deste mundo justo e fraterno depende de todos nós.
Nédier
- Os mandantes deste crime ainda não foram punidos