sábado, 8 de maio de 2010

Mamãe



Minha mãe, no dia do seu casamento, grávida de três meses. Nunca nos escondeu.
- O namoro já ia pra mais de dez anos, já estava em tempo.
Pelo que tudo indica, a decisão foi dela...
Foi ao casamento sozinha, saindo da casa de meu pai.
Sua mãe proibiu seu padrasto e seus cinco irmãos comparecerem, uma vez que a família de meu pai era de imigrantes semi-analfabetos e a dela, de professores.
...

Um dia destes eu e a minha filha Ana ficamos lembrando tudo que "herdamos" de minha mãe. Sua avó Delma.

- Os ditados que ela criava ou adaptava, normalmente chocantes.

- As atitudes temerárias, como estimular um neto a se atirar de cima de uma árvore alta.

- Declamar “A Canção do Tamoio” do Gonçalves Dias quando eu chorava de dor (ai que raiva!). Era chorar e vinha o inevitável : "não chores meu filho, não chores que a vida é luta renhida viver é lutar..." etc e tal.

- A sua lei da transferência da dor. Se seguíssemos viveríamos em estado permanente de auto-espancamento:

- Bateu a cabeça, dê uma topada que a dor vai pro pé.

- A sua indiferença à morte: - "Morreu? antes ele do que eu, pela alma dele c... eu".
Pensei que não diria quando perdeu o primeiro irmão.

Disse.

- Se reclamásse de fome, ouvíamos, para nosso profundo desespero:
- Vá à rua e mate um homem.

Era generosa, intuitiva e auto confiante.
Nunca se sentiu pobre, nem permitiu que nos sentíssemos.
Jamais desejou ter mais do que o pouco que tinha.
- Pra que? Pra sobrar?

- Não acreditava em contágio.
Quando ficou tuberculosa, dava um jeito de eu ir dormir com ela no isolamento do hospital.
Fez o mesmo quando minha irmã teve poliomielite. Escondida de todos, ela permitia que eu fosse visitar a irmã mais nova - que eu cuidava - entrando por uma portinhola no porão do hospital.

Lia muito e era culta para os padrões da época e irreverente para os padrões de qualquer época.
Feito uma criança, adorava nos dar sustos. Eu odiava e odeio sustos até hoje. Mas dividia nossa pouca comida com qualquer pedinte...todos os dias.

Irritada, atirava o que tinha nas mãos em cima do irritante, geralmente eu, que desenvolvi uma agilidade surpreendente em me desviar.

Infelizmente, eu em sempre conseguia.

Era só ter um temporal, podia ser de madrugada e ela deixava e até estimulava eu sair na chuva para brincar e me molhar. Às vezes, quando eu voltava encharcada e com frio, tinha que me enrolar em um cobertor porque não tinha roupa seca para me trocar. A sua inconseqüência maternal com nossa saúde e educação chegava a ser cômica.

Suas amigas eram eruditas ou analfabetas. Tratava todas como iguais... E não eram?

Passou anos ensinando uma cega muito pobre a fazer tricô e crochê, para o nosso desespero. A D.Eurídice para compensar a cegueira e pra ser notada
falava aos berros. Depois que aprendeu, continuou ir quase todos os dias lá em casa pra minha mãe corrigir seus trabalhos.

Nunca me ajudou nas lições de casa, às vezes esquecia até de comprar meus cadernos.

Era a professora mais amada e respeitada em todo o bairro.
Ia à casa dos alunos conferir seu comportamento e estudo.
Eu cresci sendo a filha da D. Delma, o que no meu bairro me dava status... Para o qual nunca dei a mínima.

Ela era uma mulher muito forte e diferente de tudo que se possa imaginar como mãe. Nunca me senti muito amada por ela, só hoje percebo as formas meio tortas com as quais ela demonstrava o seu amor. Sem muita atenção, sem muito carinho.

A primeira cama que tive foi ela que fez com ripas de madeira de forro. Embora meu pai fosse pintor, ela mesma pintou de cor de rosa e fez um colchão de palha. Foi uma cama linda para uma criança que já tinha uns três anos e dormia nos pés da cama dos pais.

Acho que ela me amava como amava todo mundo, não tinha isso de amar mais por que eu era filha.

Já eu, não concebia a idéia de viver sem ela. Ia todas as noites de pontas de pés no seu quarto pra ver se ela estava respirando
Quando ela adoecia eu barganhava com Deus e oferecia anos de minha vida em troca de sua recuperação.

Ela custou penosamente a morrer. Seu estado não tinha retorno, senil, vegetativa, estava necrosando em vida e permanecia respirando. Minhas irmãs diziam que a culpa era a minha e de minhas promessas em trocar minha vida pela dela. Ainda brincavam:
- Deste jeito você não vai longe, vê se desfaz os tratos com Deus. Esta mulher precisa descansar.

Era dura, com ela não tinha dengo que funcionasse.
- Estou saindo para o baile, mãe.
Eu ia com uma vizinha e sua filha de minha idade.
- Já limpou a louça e a chapa do fogão?
Claro que já tinha limpado, nem me ocorria não cumprir minha obrigação. As mãos encardidas e as unhas negras de fuligem de tanto polir a chapa do fogão com pedras e lixas, nunca afastaram meus pretendentes. Eu dançava bem.

Com integridade e dedicação ao magistério, ela me ensinou a ser íntegra e dedicada aos meus ideais.
Aprendi com ela, que não era religiosa, a amar o excluído, o miserável, o sem-nada, Aprendi também e neste assunto ela era mestra: a ter fé em mim mesma e a não ter medo de nada.

A figura que permanece até hoje em minha lembrança é a dela empunhando acima da cabeça, um peso de papel de vidro, redondo.

Sua única arma.

A qualquer ruído suspeito na madrugada, ela saia descalça para rua, com o dito peso de papel em punho. Dava voltas na nossa casa, de camisola de algodão branco até os pés. O cabelão farto, solto, escuro lhe dava um aparência de imponente justiceira em busca de um possível ladrão. Quando ela voltava ilesa, meu pai ainda estava colocando as botas.
Não sinto sua falta, ela está incorporada em mim. Libertária, corajosa e irreverente.

Nunca lhe ocorria que alguma coisa pudesse dar errado e tudo dava certo.

Minha mãe foi a pessoa que mais amei na vida.

Nédier
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- Além de ter escrito para minha mãe e em sua homenagem, quero dedicar este texto ao Professor José Carlos Antonio que, como minha mãe dedicou, dedica sua vida ao magistério e Eliana Guimarães
de Almeida Psicóloga Clínica - que gostou do que escrevi sobre minha mãe e me inspirou a colocar os escritos neste blog.