Eu, aos cinco anos, num baile de Carnaval!
Quando eu ainda não tinha completado 10 anos, embora já tivesse concluído a quarta-série primária, não podia fazer exame de admissão para o qual era exigido 11 anos completos.
Nesta mesma ocasião tive que me mudar do bairro do Ahu, útero/mãe dos imigrantes italianos do começo do século.
Lá nós éramos todos filhos de operários e, com exceção à minha mãe, as mulheres eram donas de casa semi-analfabetas. Não conhecíamos e nem sabíamos que existiam “os ricos”.
Estudávamos na mesma escola e vestíamos roupas herdadas dos irmãos mais velhos e só usávamos sapatos em algumas ocasiões. Sapatos duros, apertados que me rendem até hoje joanetes e dores nos pés.
Por causa de prejuízos com o botequim de meu pai, minha mãe resolveu vendê-lo e construir outra casa. Durante a construção, nós nos mudamos, os seis, meus pais e suas quatro filhas, para uma casa de duas peças nos fundos da casa de uma tia.
A casa era onde hoje é o Centro Cívico, na época chamava-se Campo do Paraná. Era uma região ribeirinha que vivia alagada pelo Rio Belém. Um paraíso de sapos. Passei a conviver com muita lama, destas de cobrir os pés.
Para eu não ficar em casa esperando ter idade para fazer o exame de admissão, minha mãe resolveu me matricular em uma escola no centro da cidade, era a única, que possuía quinta série.
Como se tratava de uma escola pública, os alunos deviam ser de classe média, mas para uma criança pobre, de dentes mal-cuidados, vestida com roupas velhas e não muito limpas, aquelas crianças eram todas príncipes e princesas. Vestiam aventais engomados, seus lanches eram embrulhados em guardanapos engomados, seus cabelos eram limpos e bem penteados e o principal: seus sapatos brilhavam de tão limpos.
Nunca me senti pior, mais desajustada e infeliz.
Conheci um outro mundo do qual eu não fazia parte.
Não fui discriminada, mas me senti assim. Olhando aquelas crianças tão diferentes das crianças que cresceram comigo me senti pobre, suja e inadequada, pela primeira vez na vida.
Dio mio!!! como eu me sentia inferior olhando os cabelos brilhantes e impecáveis da Débora, o sorriso do Renato, branco como seu avental (anos mais tarde ele foi odonto-pediátra dos meus filhos, e é claro que não lembrava de mim, nem me reconheceu).
Eu voltava para casa meio-dia, morrendo de fome, só com o dinheiro do ônibus que dava pra comprar um pastel. Quase sempre eu optava pelo pastel e como conseqüência tinha que caminhar 4 km, sol a pino, até aquele banhado onde morávamos – provisoriamente - enquanto meus pais construíam uma casa no Ahu.
Eu lia muito naquela fase. Minha tia tinha um armário cheio de livros. Romances de M.Delly, livros policiais, de tudo um pouco. Para fugir daquele desterro, daquela tristeza profunda, eu lia sem parar. Li todos os livros de minha tia e em função disso, eu devia ter um bom vocabulário.
Não lembro o tema da primeira redação que levei para fazer em casa, devo ter bloqueado, mas lembro quando entreguei para a professora.
No dia seguinte fui chamada em frente da sala, na frente de todas aquelas crianças que me faziam sentir constrangida e fui. Achei que iria receber um elogio, minha mãe me chamava de escritora da família.
A professora, que se chamava Angelina, perguntou quem é que tinha feito aquela redação, eu respondi que tinha sido eu, ela contestou:
- Essa redação foi feita com a mão do gato!
Eu não conhecia aquela expressão, então ela me disse com todas as palavras que eu não tinha capacidade para escrever o que estava escrito naquela folha de papel.
Lembro muito pouco do que seguiu. Segurei o choro até chegar em casa. Depois lembro de minha mãe juntando toda a minha “produção literária”: historinhas, poesias infantis e levando na escola para esfregar na cara da tal professora. Chegando lá minha mãe constatou que a minha professora tinha estudado com ela na escola normal. Tiveram uma conversa amigável, muito cordial, minha mãe deve ter explicado que eu gostava de escrever e a D. Angelina deve ter acreditado que a redação era de minha autoria.
Ninguém me pediu desculpas.
Nédier
Foto restaurada com dificuldade...
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Meus queridos,
Hoje eu lembrei de um fato de minha infância que me marcou pra sempre. Consegui escrever sobre ele. Foi uma catarse. É muito pessoal e só estou colocando no meu blog porque existem muitas crianças desajustadas. Para lembrar a todos que crianças precisam de estímulo e carinho, que crianças sofrem e continuam sofrendo depois de adultos por causa de pequenos gestos de descaso que podemos evitar.
Eu demorei quase quarenta anos para voltar a escrever por causa de uma pequena injustiça que levei todo este tempo para superar.
Nédier.
Hoje eu lembrei de um fato de minha infância que me marcou pra sempre. Consegui escrever sobre ele. Foi uma catarse. É muito pessoal e só estou colocando no meu blog porque existem muitas crianças desajustadas. Para lembrar a todos que crianças precisam de estímulo e carinho, que crianças sofrem e continuam sofrendo depois de adultos por causa de pequenos gestos de descaso que podemos evitar.
Eu demorei quase quarenta anos para voltar a escrever por causa de uma pequena injustiça que levei todo este tempo para superar.
Nédier.
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Entrei muito cedo na escola só porque minha mãe era professora. Não era permitido o ingresso de crianças menores de sete anos no primeiro ano da escola.
Quando eu ainda não tinha completado 10 anos, embora já tivesse concluído a quarta-série primária, não podia fazer exame de admissão para o qual era exigido 11 anos completos.
Nesta mesma ocasião tive que me mudar do bairro do Ahu, útero/mãe dos imigrantes italianos do começo do século.
Lá nós éramos todos filhos de operários e, com exceção à minha mãe, as mulheres eram donas de casa semi-analfabetas. Não conhecíamos e nem sabíamos que existiam “os ricos”.
Estudávamos na mesma escola e vestíamos roupas herdadas dos irmãos mais velhos e só usávamos sapatos em algumas ocasiões. Sapatos duros, apertados que me rendem até hoje joanetes e dores nos pés.
Por causa de prejuízos com o botequim de meu pai, minha mãe resolveu vendê-lo e construir outra casa. Durante a construção, nós nos mudamos, os seis, meus pais e suas quatro filhas, para uma casa de duas peças nos fundos da casa de uma tia.
A casa era onde hoje é o Centro Cívico, na época chamava-se Campo do Paraná. Era uma região ribeirinha que vivia alagada pelo Rio Belém. Um paraíso de sapos. Passei a conviver com muita lama, destas de cobrir os pés.
Para eu não ficar em casa esperando ter idade para fazer o exame de admissão, minha mãe resolveu me matricular em uma escola no centro da cidade, era a única, que possuía quinta série.
Como se tratava de uma escola pública, os alunos deviam ser de classe média, mas para uma criança pobre, de dentes mal-cuidados, vestida com roupas velhas e não muito limpas, aquelas crianças eram todas príncipes e princesas. Vestiam aventais engomados, seus lanches eram embrulhados em guardanapos engomados, seus cabelos eram limpos e bem penteados e o principal: seus sapatos brilhavam de tão limpos.
Nunca me senti pior, mais desajustada e infeliz.
Conheci um outro mundo do qual eu não fazia parte.
Não fui discriminada, mas me senti assim. Olhando aquelas crianças tão diferentes das crianças que cresceram comigo me senti pobre, suja e inadequada, pela primeira vez na vida.
Dio mio!!! como eu me sentia inferior olhando os cabelos brilhantes e impecáveis da Débora, o sorriso do Renato, branco como seu avental (anos mais tarde ele foi odonto-pediátra dos meus filhos, e é claro que não lembrava de mim, nem me reconheceu).
Eu voltava para casa meio-dia, morrendo de fome, só com o dinheiro do ônibus que dava pra comprar um pastel. Quase sempre eu optava pelo pastel e como conseqüência tinha que caminhar 4 km, sol a pino, até aquele banhado onde morávamos – provisoriamente - enquanto meus pais construíam uma casa no Ahu.
Eu lia muito naquela fase. Minha tia tinha um armário cheio de livros. Romances de M.Delly, livros policiais, de tudo um pouco. Para fugir daquele desterro, daquela tristeza profunda, eu lia sem parar. Li todos os livros de minha tia e em função disso, eu devia ter um bom vocabulário.
Não lembro o tema da primeira redação que levei para fazer em casa, devo ter bloqueado, mas lembro quando entreguei para a professora.
No dia seguinte fui chamada em frente da sala, na frente de todas aquelas crianças que me faziam sentir constrangida e fui. Achei que iria receber um elogio, minha mãe me chamava de escritora da família.
A professora, que se chamava Angelina, perguntou quem é que tinha feito aquela redação, eu respondi que tinha sido eu, ela contestou:
- Essa redação foi feita com a mão do gato!
Eu não conhecia aquela expressão, então ela me disse com todas as palavras que eu não tinha capacidade para escrever o que estava escrito naquela folha de papel.
Lembro muito pouco do que seguiu. Segurei o choro até chegar em casa. Depois lembro de minha mãe juntando toda a minha “produção literária”: historinhas, poesias infantis e levando na escola para esfregar na cara da tal professora. Chegando lá minha mãe constatou que a minha professora tinha estudado com ela na escola normal. Tiveram uma conversa amigável, muito cordial, minha mãe deve ter explicado que eu gostava de escrever e a D. Angelina deve ter acreditado que a redação era de minha autoria.
Ninguém me pediu desculpas.
Nédier