domingo, 9 de agosto de 2009

Carta a meu pai.


Pai,
Há 21 anos não convivemos, porém muito antes deste tempo, a doença, que já tinha nos privado das palavras e palavrões que você distribuia de forma tão gentil e democrática, colocara também nuvens de não reconhecimento em seu olhar.
Poucos minutos antes de você partir estávamos bem próximos. O meu braço enlaçava o seu travesseiro e percebi de repente que você recuperara a lucidez. Os seus traços e a sua expressão se refizeram como por um milagre. Você me olhou, ergueu as sobrancelhas e me perguntou em silêncio:
- O que que é isso, “porco cane” ?
Em silêncio respondi que você estava indo para um lugar melhor onde iria reencontrar seus pais, alguns irmãos e amigos. Pedi que você não insistisse em ficar, e abandonasse aquela roupa tão surrada do seu corpo que impedia você andar, falar e imprecar contra o mundo com humor.
Depois desta troca de palavras, feita em silêncio, você parou de respirar. A enfermeira retirou o soro e o oxigênio já inúteis para a tua nova vida e como ela faz parte da minha vida, respiro por você.
Quando o médico chegou e soube que você não o esperara, me afirmou, com olhos úmidos de tristeza:
- O seu Berto é a prova de que a bondade não está no corpo físico, mas em um lugar qualquer que eu não sei onde fica.

A neuro-lues de uma sífilis adquirida na adolescência e a meningite que apagou um dos seus olhos, muito azuis, deveriam tê-lo embrutecido. A lesão cerebral que ele ganhou atropelando um fusca e que o deixou por uns dias em coma, não alterou o seu comportamento.
Quando ele voltou do coma disse:
- Vamos pra casa. E continuou o mesmo.
Tivemos que consolar a jovenzinha que dirigia o fusca que ele quase destruiu, pois era um homem alto e forte que se recusava andar pela calçada e ela não sabia.

Vejo-o em mim, na expressão dos olhos, nos gestos, na integridade de ser sempre a mesma e de não me deslumbrar e nem me intimidar com nada e com ninguém.
Não sei se aprendi com você ou herdei de seus genes esta falta absoluta de respeito pelas “autoridades constituídas” e este pavor de aglomeramentos que hoje chamam de síndrome do pânico.
Você mal sabia ler e escrever e além de me ensinar a dançar, você me ensinou - com seu modo de ser, que a bondade supera todos os obstáculos.
Pai, hoje escrevo esta carta pra mim mesma, uma vez que você vive em mim, gostaria que ela substituisse o presente que você pedia e eu lhe dava todos os anos: uma camisa preta, vermelha ou de cor berrante, com indispensáveis bolsinhos que, segundo você, serviam para guardar a conta da luz.

Pai, hoje é o nosso dia, desculpe se escrevi tanto e muito obrigada por continuar sendo meu pai.
Nédier
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Imagem: Antonio Ramos