Aline de Souza Picheth, minha avó, mulher inigualável em sua época. Ficou viúva ainda jovem. Duas vezes. Criou sozinha seis filhos, apenas com o salário do magistério. Muita pobreza e um compromisso rígido com a educação. Obrigava, nós, seus netos, desde pequenos a ouvi-la ler o jornal inteiro, enquanto fumava seu palheiro (que desaconselhava). Só o estudo dignifica, era seu lema. Nunca entendi e acho que nem concordo.
Viajava para o Rio, Buenos Áries em tempos que as mulheres só saíam de casa para a missa, compras e festas de família. Teria sido uma ótima política, não perdia oportunidades e era autoritária.
Odiava o serviço doméstico, não lembro de vê-la perto do fogão, mas lembro de vê-la a tarde toda, com a maior má vontade, lavando (mal) a louça do almoço. Trabalho feito em prestações, interrompidas por um cigarrinho.
Morreu com a minha idade e cinqüenta anos de prática de magistério.
A escola estadual do bairro do Ahu onde moro em Curitiba, leva seu nome.
-------------------------------------------------------------------------
Viajava para o Rio, Buenos Áries em tempos que as mulheres só saíam de casa para a missa, compras e festas de família. Teria sido uma ótima política, não perdia oportunidades e era autoritária.
Odiava o serviço doméstico, não lembro de vê-la perto do fogão, mas lembro de vê-la a tarde toda, com a maior má vontade, lavando (mal) a louça do almoço. Trabalho feito em prestações, interrompidas por um cigarrinho.
Morreu com a minha idade e cinqüenta anos de prática de magistério.
A escola estadual do bairro do Ahu onde moro em Curitiba, leva seu nome.
-------------------------------------------------------------------------
- O que aconteceu com Jurema?
Abriu a porta, a soleira, uma moldura velha e descascada, parecia feita para um homem como ele. Ar cansado, rosto cheio de pó, cabelo sem corte e sem brilho, um terno grande despencando nos seus ombros.
Entrou na sala-cozinha. Uma mesa no centro, um fogão, um armário de louça, uma pequena poltrona e um rádio pousado sobre uma toalhinha bordada, em uma prateleira exclusiva para ele. As portas de entrada, do banheiro, do quarto e uma janela compunham aquele lugar descorado e poeirento.
O homem sentou numa cadeira, sem cuidado, o peso do seu corpo pareceu, por instantes, que ia desmontar a cadeira.
Sobre a mesa a carta.
Leu em voz alta.
“Raimundo, vou passar uns tempos na chácara da tia Mariquinha, não sei quando volto. Não sei se volto”.
Não tinha assinatura.
Suspirou fundo, mal teve tempo de assimilar a notícia, pancadas na porta.
- É o Juraci.
Sem mudar a expressão disse em voz alta:
- Entre!
Entra o Juraci, esfregando as mãos.
- Mundo, sou teu amigo há mais de 20 anos. A gente sempre foi sincero. Não dá mais pra agüentar.
- Se for falar da Jurema, já sei, não se preocupe, conheço a mulher. A vizinhança conhece. Sei que ela não saia do teu pé, que ia à tua casa quando eu viajava. Ela é bonitinha, não culpo você não resistir. Eu não a agüento já faz tempo. Ela facilitou. Leia a carta.
Leu.
- Pois é cara, ela queria fugir comigo, disse que tem umas economias que dava pra gente se estabelecer em outro lugar. Acabei de dizer pra ela que não sou louco, que estava me sentindo muito mal por tua causa e mandei-a se arrancar.
Pingos de água caíam sobre a mesa. O Raimundo, sem muita convicção, afastando a carta de perto da água, falou:
- Ta furado, é preciso consertar.
- Vamos sair cara, até o snooker, tomar umas. Pode ser que a gente possa conversar.
- Não tem mais o que conversar, vamos.
Saíram e apagaram a luz.
Som de passos apressados, uma mão surgiu no desvão da porta e acendeu a luz.
Morena, baixinha, de vestido justo e estampado e cabelos soltos até o ombro. Jurema. O rimel borrado e a pintura meio desfeita mostravam que ela havia chorado. Seu rosto mudou de expressão ao ver a carta sobre a mesa.
Pegou-a rapidamente e rasgou-a em picadinhos e jogou na lixeira.
- Ele ainda não chegou – falou pra si mesma, com um ar alívio. Uma alegria inesperada compôs seu rosto.
As cortinas de veludo azul desbotado se fecharam. Tambores e uma voz grave anunciaram:
- Fim do primeiro ato.
Nas molengas arquibancadas de madeira do Circo Teatro Áurea, umas vinte pessoas desacomodadas, tentavam achar um lugar sem goteiras. A chuva forte caia sobre o toldo furado e já encharcava a serragem do chão.
Minha avó de taileur preto, de cabelos presos num coque e com um pó de arroz mais claro que sua pele, tinha uma postura de realeza. Mesmo sentada naquelas tábuas velhas, com uma neta de cada lado lembrava à rainha mãe, à rainha avó. Uma rainha. Ela prometera nos levar ao circo teatro e lá estávamos. A Liane e eu. Ela nos olhou e perguntou tranqüila:
- Acho que eles vão suspender. Não sobrou mais ninguém, estão todos indo embora. Querem ficar?
Queríamos. Ficamos.
Não lembro dos dois atos que foram representados apenas para nós três.
Só lembro do som da chuva, do colorido das roupas e da maquiagem exagerada dos personagens.
A casa de minha avó ficava bem perto do circo. Quando saímos a chuva passara e brilhavam umas tímidas estrelinhas no céu.
Nédier
- Dedico esta postagem à minha querida prima Liane com quem me criei como irmã. Não conheço ninguém mais gentil, doce e educada do que ela. Amo-a e admiro-a MUITO.