A Sedução Literária dos Ratos
Nunca duvidei da grandeza literária dos ratos, tampouco do potencial político-simbólico na vida social destes roedores por sina e imperativo existencial. Quando Albert Camus publicou o romance “A Peste”, o mundo vivia a ressaca escabrosa da II Guerra Mundial.A narrativa da “A Peste” é ambientada na cinzenta Oran, cidade da Argélia, onde a população consome seus dias em função do trabalho e do acúmulo de riquezas. Então os ratos, misteriosamente, vão tomando a cidade. As pessoas se desesperam em vão. Outro importante livro que apresenta o rato como causa da corrosiva insônia do protagonista Naziazeno – no limite do tormento e da angústia – é “Os Ratos” de Dyonélio Machado.A literatura bem elaborada, no decorrer da história, tem registrado com fino olhar, senso crítico, humor e certa dose de ironia, o comportamento político-cultural, ilusões e desilusões do ser humano nas mais diversas sociedades, às vezes, até se dá o direito de soprar – na forma e na mensagem – um facho de luz, em tempos de dor e de obscurantismo (aqui estivemos, assim somos e vivemos ou teimamos viver)
Vale citar, por exemplo o que nos legou um Franz Kafka, José Saramago, Gabriel Garcia Marques, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, dentre tantos e tantas.Neste tempo de banalização da vida e da morte, em que quase nada mais causa estranhamento e indignação, certamente, e de igual forma, a beleza da literatura e das relações humanas está condenada a pouca audiência. Mas a metáfora dos ratos de Camus e Dyonélio Machado ganha perenidade na medida em que refletimos principalmente sobre as atuais questões políticas.
Por ventura ou por azar, como cantaria o músico Belchior, a imagem dos ratos assaltam nosso campo de visão sempre que nos engasgamos e ficamos constrangidos, ou felizes, com intermináveis escândalos de corrupção no governo federal, estaduais e municipais, o salário exorbitante dos parlamentares (muitos deles reeleitos sucessivas vezes com nosso voto de sacrossanta miopia), desvios absurdos de verbas de saúde e de educação para o bolso de políticos mascaradamente “inocentes”, obras públicas astronomicamente superfaturadas, a estúpida especulação imobiliária num país de geografia continental, o agronegócio voraz e predador do meio ambiente, e por ai segue o elástico interminável de situações horripilantes onde a impunidade grassa como uma atroz peste bubônica a glorificar a indiferença humana.
Agora que releio o livro de Camus e penso nessas coisas todas, e sobretudo, penso na relevância da literatura na cultura de um povo, e também na importância do rato de laboratório nos estudos da biologia molecular, me vejo a balbuciar versos da canção “Ode aos Ratos” de Chico Buarque:“Saqueador da metrópole/Tenaz roedor/ De toda a esperança/ Estuporador da ilusão/ Ó meu semelhante/ filho de Deus, meu irmão.”Eis a arrebatadora sedução literária dos ratos!
Paulo Ayres Marinho, escritor