A morte, na sua condição de mistério profundo, transporta qualquer cadáver para o território do sagrado. Não se trata, apenas, do sentimento de familiares, entes queridos, adeptos, mas do espanto geral diante do destino comum da condição humana. Todos haveremos de morrer e, pelo menos para o santo de cada qual, ninguém é "qualquer um". Por isso mesmo, tripudiar, comemorar, sapatear sobre os restos mortais até do pior inimigo é uma atitude infamante.
Obama mandou matar Osama e, depois do anúncio oficial do sucesso da empreitada, o espírito de vingança que habita o senso comum produziu aquilo que Zuenir Ventura chamou de "celebrações com um toque de necrofilia". Pegou muito mal. Tanto assim que houve uma mudança de eixo na cobertura jornalística do segundo dia. A euforia laudatória começou a ceder espaço para a cautela na avaliação do sentido e das múltiplas implicações do acontecido. Onde se afirmavam certezas, agora proliferam dúvidas.
Informações oriundas dos serviços secretos serão sempre interessadas e duvidosas. Mas, para o caso, não se dispõe por enquanto de outras fontes. Logo, tão cedo não se saberá o que realmente aconteceu, a não ser o que já se sabe. Tropas especiais americanas, treinadas para fazer o que fizeram, invadiram sem prévio aviso um país aliado, atacaram na calada da noite a residência onde supostamente vivia o fundador da Al-Qaeda.
Desarmado, ele foi morto e teve o seu corpo lançado em algum lugar do mar sem fim.
Local secreto para evitar romarias. Fotografias e filmes dizem ter feito, mas não mostraram. O diretor da CIA, Leon Panetta, afirmou que são imagens "horrendas", agridem sensibilidades, rosto "desfigurado" por tiros de grosso calibre, peças potencialmente "incendiárias". Os executores são sempre mais grosseiros do que os mandantes.
Retalhos de informações recolhidos nos jornais dão a entender que o serviço secreto americano já conhecia, pelo menos deste o fim do ano passado, a localização do mais procurado "inimigo da América". Os militares aliados paquistaneses, que recebem dos americanos bilhões de dólares para a "luta contra o terror", na certa, não podiam desconhecer aquele confinamento entre quartéis. Podiam ter agido antes e de outra forma. A escolha da data e o formato da operação espetacular, que superou em mídia o casamento real e a beatificação do Papa Pop, talvez encontrem explicação nos meandros trevosos da política interna americana.
As primeiras pesquisas atestam o crescimento exponencial da popularidade do postulante à reeleição. A oposição republicana ultra-reacionária que antes acuava o presidente, cobrando dele provas de sua nacionalidade, agora o elogia. O atestado de óbito de Osama substituiu com vantagem a certidão de nascimento de Obama. A história política americana, tão farta em armações e assassinatos, produz um novo giro. Nele, Osama e Obama são, na verdade, agregados de projeções simbólicas que se acumulam sobre o pêndulo enigmático da história.
Na grafia do nome, apenas uma letra os separa. Além da sonoridade comum, carregam no restante da assinatura marcas de famílias estranhas ao ocidente saxão. Barack Hussein e Bin Laden, nomes estrangeiros, são as duas personalidades de maior destaque na história recente do Império americano. Sobre o corpo agora estraçalhado de Bin Laden, o "eixo do mal" foi construído. O estrangeiro como inimigo absoluto, que está em toda parte e deve ser caçado sem dó nem piedade. O outro "estrangeiro", aquele que teria vindo para redimir os pecados do Império, fornece feição nova na qual se restaura o antes tão execrado "eixo do Bush".
Ao contrário do que se alardeia, a operação americana no Paquistão não foi uma vitória contra terrorismo. Quando um Estado se concede licença para matar, se vangloria do uso da tortura para obter resultados, viola a legislação internacional, atropela a soberania alheia, sem dúvida, pratica uma fieira de crimes que alimenta o ciclo do terror. A execução sumária de inimigos, a profanação e o desaparecimento de cadáveres nunca foram marcos positivos do processo civilizatório. É doloroso constatar, mas o que aconteceu no Paquistão foi, por todos os títulos, um exemplo modelar do pior e mais perigoso tipo de terrorismo: o terrorismo de Estado.
Léo Lince é sociólogo.