domingo, 25 de março de 2012

Guido Mantega e as minhas notas promissória

Foto tirada pelo meu amigo Renê em um longínquo Encontro Nacional dos Auditores do Trabalho. Esta foto não tem nada a ver com o texto, mas eu estou aparentemente tão feliz e otimista que resolvi colocá-la neste texto sombrio para contrabalançar.




Uma boa parte de minha infância vivi em um ambiente extritamente masculino. À noite fazia lições da escola no balcão do botequim do meu pai e frequentava a barbearia conjugada ao boteco, onde enleada em um cobertor, no colo de um dos operários do bairro escutava jogos de futebol do Rio de Janeiro em um grande rádio de madeira. Quando eu dormia, sempre enleada no tal cobertor um daqueles operários, fregueses, amigos me colocava na cama.
Minha casa ficava atrás do botequim e da barbearia, entrávamos ou pela porta que ligava o boteco à nossa sala de visitas, ou por um portão que dava para a cancha de boche que passávamos rente para entrar em uma pequena área que dava na cozinha.
Quando não tinha futebol escutávamos, na cozinha, programas radiofônicos da Rádio Nacional..."o sombra sabe o mal que se esconde..."etc e tal.
Eu me enrodilhava na minha coberta e procurava um colo disponível e aconchegante, ora o do meu pai, ora um homem chamado Carlos que me tratava como se fosse sua filha.
Morava conosco.
Alugávamos um quartinho para ele bem perto da cozinha, sala de jantar, de visitas. Um corredor enorme que abrigava um fogão à lenha, uma grande mesa para as refeições, o Rádio com cadeira embaixo para os ouvintes.
Cresci assim, descalça, roubando frutas em um mato de um tal de Frenha, jogando futebol, balas Zequinhas no bafo e um jogo chamado caçador, um tanto violento. Tínhamos de atingir os nossos adversários com boladas violentas para marcar pontos. .....
Fazendo este "flash back" concluo que fui uma criança livre, sem amarras, punições, sem ser repreendida ou castigada. Meus pais trabalhavam e era raro mães trabalharem fora.

Minha mãe se danava em atender o botequim que de dia era um "armazém" de secos e molhados, que supria de alimentos a vizinhança.
Lembro das grandes caixas de cereais à granel onde os fregueses se sentavam.
Todas as compras eram no "caderno" ou seja, fiado, no fim do mês eram feitas as contas das despesas e quase sempre pagas.
Durante o dia meu pai pintava paredes. De dia minha mãe e minha irmã atendiam os fregueses. De tarde minha mãe ia dar aula em uma Escola Isolada, minha irmã tomava seu posto mal chegada da Escola Normal. Meu pai, à noite, fechava as portas e aquilo se transformava em uma festa. Jogo de truco, bebida à vontade e por causa do álcool grandes e pequenas brigas entre amigos. Meu pai jogava-os no meio da rua. Uma vez empurrou um invocado que picava seu fumo e ele mais que depressa enfiou o canivete no braço paterno, o mais amado. Comoção árabe...rs...
Iria longe contando dos torneios de futebol, dos bailes carnavalescos e dos bailes "oficiais".
Paro aqui e lembro, ou melhor sinto a sombra que pairava sobre meus pais, minha casa, sobre mim e eu não entendia. Eu sentia uma sensação de perigo iminente quando o mês ia terminando e tinha relação com dinheiro, o que entrou, o que saiu e tudo isso se resumia em duas palavras fantasmagóricas ditas em voz baixa: nota promissória. Elas eram referentes às compras que meus pais faziam para o botequim.Muitas vezes faltava dinheiro para pagá-las.
Meu pai não colaborava muito para que houvesse lucro e minha mãe era implacável. Brigavam feito dois cães furiosos. Minha mãe ameaçava sumir de casa. Era o caos nosso de cada mês. Foi indo até que minha mãe resolveu vender o "estabelecimento"
Fiz o normal, o curso de Direito. Minha mãe aumentou minha idade, não perguntem como, e eu, já aos 14 anos trabalhava no Estado, aos 16 lecionava na escola do bairro.
O curso de Direito me proporcionou alguns cursos de economia política e congêneres. Confesso que colei. Tudo era muito complicado e continua sendo. E cada vez mais.

O que são debêntures, Nasdak, oscilações do mercado atingindo o mundo. Vejo lindas jornalistas explicarem todo este embroglio, sorridentes com se fossem Anas Maria Bragas da economia.
Dão respostas.
Continuo sem entender.
Sei que é o dinheiro que move o mundo capitalista( e o socialista). Sou informada diariamente pelos meios de comunicação da corrupção, do desvio do dinheiro público enquanto o trabalhador, o que constrói, planta e colhe vive das migalhas que sobram destes grandes banquetes.
De repente todo mundo ficou otimista e o nosso país foi alçado aos píncaros sabe-se lá do que.

Perdoem-me os doutores, os entendidos no assunto, mas a menininha que fazia seus deveres de casa no balcão de um bar não consegue relaxar.
Burra! Não estudou quando pode e agora tem uma certeza instintiva que apesar de tudo parecer bem, no horizonte as nuvens estão cinzentas e que teremos de pagar as notas promissórias de todas estas dívidas, de todos os compromissos assumidos e mal gerenciados. (as festas do meu pai depois do expediente levaram à venda do armazém)
Não tenho mais colo, os operários do meu bairro italiano morreram todos, o barbeiro que tinha uma orquestra chamada Pinguim e que eu acompanhava em serenatas tocando pandeiro, também já morreu. Meus pais, duas irmãs, todos os tios, muitos amigos do peito já não estão mais ao alcance do meu olhar e do meu tato.




Porque esta ameaça velada e angustiante de uma entidade chamada Nota Promissória voltou a pairar, como nuvens escuras, sob minha cabeça?




Se tudo parece tão simples assim - Sr.Guido Mantega, o que o senhor sabe sobre notas promissórias??
Nédier




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