sábado, 12 de maio de 2007

Histórias da D. Delma, minha mãe.

Carnaval de 1932
Minha mãe aos 17 anos
La Bella Donna

Cresci ouvindo meu pai dizer:
- Eu tive quatro filhas bonitas, mas nenhuma chegou aos pés da mãe.

I
Quando saíamos juntas, eu achava que minha mãe era luminosa, o foco de todas as atenções. Eu tinha certeza que todos os homens do mundo estavam apaixonados por ela.
Certa vez minha mãe me levou a um programa de auditório na Rádio Guairacá, eu devia ter uns cinco anos e quando ouvi o cantor cantando com uma voz potente de tenor: - “Eu gosto daquela mulher... o nome dela eu não digo, não quero ter inimigos... “ - subi na poltrona e gritei bem alto:
- O nome dela é Delmarine!
Para aquela menininha a sua mãe era uma mulher irresistível.

Às vezes tento visualizá-la como deveria ser “de verdade”: uma professora primária pobre, vestida com roupas simples e discretas. Não consigo. Então, tenho vontade de perguntar para mim mesma, como Cristo perguntou para Pilatos: - Mas o que é a Verdade?

II
Eu sentava ao seu lado no banco do bonde que nos levava até o bairro do Portão, aonde íamos todos os meses visitar suas tias e primos que eram muito pobres. Levávamos roupas e comida.
Hoje ainda eu me pergunto:
- Como é que ela conseguia sendo tão pobre, ajudar os ainda mais
pobres?
- Como é que existia comida suficiente para repartir todos os dias o nosso almoço e com qualquer pessoa que viesse pedir ajuda?
O invariável:
- Pergunte se ele já almoçou? - fazia parte efetiva do nosso vocabulário.
Há algum tempo, o meu filho mais novo, já um homem, ao ouvir a campainha que interrompia a nossa refeição, ficou irritado. Abriu a porta e perguntou:
- O senhor já almoçou?
Sorri intimamente ao ouvir, como um eco do passado, as palavras de minha mãe.

III

Morávamos em um bairro de italianos e quando eu ia visitar os parentes do Portão observava que eles não tinham a pele branca e pontilhada de sardas como a minha e a, de minhas amigas.
Eu os amava. Eram alegres e simples. Posso ainda sentir o cheiro da fumaça do fogão e os aromas deliciosos do café sendo passado e do feijão fervendo numa panela de ferro.
As primas de minha mãe me deixavam correr descalça pelos campos e brincar nas poças de água feitas pela chuva. Da Nhá Tide, tia de minha mãe ficou a lembrança morna e doce de bondade.
Eu já era adulta quando, ao olhar uma foto antiga, percebi que a Nhá Tide era negra. Esta é uma das muitas razões que me impedem entender as distinções feitas entre raças e classes sociais e me dão a convicção de que qualquer tipo de preconceito não passa de uma atitude indigna.

IV

Volto ao bonde que me levava ao Portão e lembro de minha ansiedade porque as manobras na troca de trilhos faziam o bonde andar para trás.
- Mãe, a gente está voltando!
Ela me sorria divertida e dizia que era apenas uma manobra do motorneiro para o bonde chegar certinho onde devia ir.
Hoje, quando começo ficar apreensiva porque certos acontecimentos de minha vida me obrigam a andar para trás, uma menininha dentro de mim me tranqüiliza. Ela aprendeu com sua mãe que tudo não passa de manobras feitas pelo Motorneiro para que eu chegue tranqüila ao meu destino.

V

Todos os meses, lá íamos nós, minha mãe e eu, enfrentar uma longa fila dentro da Secretaria de Educação para receber o pagamento de seu salário de professora primária.
Era nosso dia de extravagâncias!
Com o dinheiro recebido socado no fundo da sua bolsa minha mãe me levava à Confeitaria Schaffer, onde cometíamos a mais terrível e deliciosa extravagância: fazíamos um lanche!
Eu nunca mais me senti tão rica e tão feliz como fui: sentada, com os pés mal tocando no chão, diante de uma mesa com tampo de mármore onde um garçom nos servia café com leite e dois sanduíches mistos.

VI

Foi a D. Delma quem fez, com ripas de madeira que pintou de cor de rosa, a primeira cama que eu tive.
À noite ela revirava o colchão de palha e fazia um pequeno ninho para eu deitar. Quando ela me cobria, o meu corpo ficava escondido no meio das palhas do colchão e ela me garantia que era assim que dormiam as artistas de cinema em Hollywood.
Até hoje acho que eu acredito nisso, pois não consigo deixar de me sentir famosa, quando me afundo em alguma cama fofa e macia que ainda existem em alguns hotéis.

VII

A mãe sempre acreditou que tudo foi feito para dar certo. Não tinha dúvidas.
- Se eu tiver mesmo que ir para Curitiba amanhã, alguém me traz a passagem aqui em casa.
Ela fora até a rodoviária de Matinhos, depois de um recado que deveria voltar urgente no dia seguinte para Curitiba. Não encontrara mais passagem.
No finzinho da tarde de domingo, um casal bateu palmas em frente de nossa casa e perguntou se era lá que morava uma tal de D. Delma, diretora de uma escola que precisava ir para Curitiba no dia seguinte. A gente já sabia, lá estava a sua passagem. Ela foi entregue no portão por um casal muito feliz. Um deles desistira da viagem porque resolvera ficar mais um pouco na companhia do outro.

VIII

Este fato me fez lembrar do meu pai - paralítico e senil - um pouco antes de morrer.
Minha mãe o colocava sentado na cadeira de rodas na área em frente de casa para ele ver o movimento e puxar conversas, às vezes surpreendentemente lúcidas, com os passantes.
Certa vez quando minha mãe ia entrar em casa percebeu que ele não a reconhecera. Ela não fez nada para se identificar. Ficaram conversando como se ela fosse uma estranha.
Para manter esta ilusão, ao entrar em casa, ela deu a volta pelos fundos. Quando meu pai a viu em suas costas confessou:
- Sabe Delma, eu fiquei conversando um pouco com uma mulher que passou aqui em frente, mas não se preocupe, você é bem mais bonita do que ela!
Esta beldade, na ocasião tinha quase oitenta anos, oitocentas rugas, cabelos despenteados e enormes joanetes que deformavam o seu pé.