Voltávamos da casa de minha avó materna que morava no alto da rua XV.
Era noite alta e o caminho longo. Eu vinha sonolenta segurando a mão de minha mãe.
A minha irmã mais velha e uma prima de sua idade, já adolescentes, iam conversando animadas em nossa frente. Era uma noite transparente.
A luminosidade de um esplêndido luar projetava as nossas sombras no caminho.
Meu pai foi em nossa frente para abrir a casa, acender os lampiões e tirar água do poço.
Os pinheiros e os cedros à beira do caminho pareciam grandes monstros escuros invadindo o meu sono e o meu cansaço.
As casas eram poucas e esparsas e a estrada fora aberta pelos passos dos caminhantes habituais. Era uma trilha na vegetação rasteira.
Fazia frio, mas estávamos aquecidas pela caminhada. Minha mãe vestia um casaco de lã quadriculado miudinho, as abas, no lugar de bolsos e a gola eram de veludo bordô. Ela pendurara nos ombros a minha lancheira de papelão marrom e me puxava pela mão. Eu tinha entre quatro e cinco anos de idade.
A mãe era professora primária e naquela tarde dispensara os seus alunos mais cedo para ir na Secretaria de Educação receber o seu salário. Mais tarde iríamos todos no aniversário de minha avó Aline.
A história foi certamente repassada pelos alunos quando chegaram em casa um pouco antes da hora habitual:
- Hoje é o dia de pagamento da professora.
Distingui, ao longe, um vulto virado de costas perto de um pinheiro e mostrei pra minha mãe:
- O homem está fazendo xixi - disse ela tranqüila.
Andávamos em silêncio, olhando para frente. Já avistávamos, não muito longe, a nossa casa, aberta e iluminada.
Quando eu me sentia insegura eu olhava no rosto da minha mãe para captar a sua segurança e ela segurava a minha mão bem firme e me mandava fechar os olhos. De olhos fechados eu atravessava as ruas do centro da cidade, também de olhos fechados e segurando a sua mão eu enfrentava as ondas maiores, em direção às águas mais fundas, na praia de Matinhos.
- Pode fechar os olhos! - estas palavras me traziam a escuridão abençoada que apagava o medo e o perigo.
Depois de tentar explicar um pouco a magia transmitida pela minha mãe, volto àquela noite iluminada pelas estrelas e caminho sonolenta, sentindo a grama úmida sob os pés e o calor das mãos de minha mãe nas minhas.
Senti um medo repentino (ou teria sido um vento frio?) e procurei o rosto da minha mãe pra me sentir segura e poder fechar meus olhos. Foi quando vi o homem atrás dela. Percebi então que tinha que manter meus olhos bem abertos, pois, desta vez, o perigo era real e minha mãe não percebera .
O homem era magro, estatura mediana, usava um paletó marrom de risquinhas e um chapéu escuro enterrado na cabeça. Um lenço tenebroso escondia o seu rosto, como nos melhores filmes de cow-boy.
Com uma das mãos ele tapou a boca de minha mãe e com a outra procurou os bolsos inexistentes no casaco. Quando tentou arrancar a lancheira do seu braço, ela caiu pra trás bem em cima dele e ficaram, por instantes, disputando a minha lancheira vazia.
Desesperadas, minha irmã e a minha prima correram aos gritos em direção da nossa casa.
Minha mãe se levantou rapidamente e tentou agarrar o ladrão, mas ele fugiu. Ela correu em seu encalço, mas ele se embrenhou entre uns pés de macaqueiro e sumiu dentro da noite.
Os gritos acordaram os poucos vizinhos. Alertados, apareceram também uns guardas da Penitenciária Provisória que era próxima. Dentro deste tumulto, esqueceram de mim...
Eu não me lembro como cheguei até em casa. Só me vejo já sentada num degrau da escada e percebendo que não podia falar. Todas as palavras tinham fugido de minha cabeça, eu não conseguia articular nenhum som e nem pensar em nada, apenas percebi que não sabia mais falar. Como ninguém notou, eu fui dormir.
Dias mais tarde, encolhida embaixo da mesa da sala, escutei a minha mãe comentar com as suas irmãs, no meio de uma conversa:
A luminosidade de um esplêndido luar projetava as nossas sombras no caminho.
Meu pai foi em nossa frente para abrir a casa, acender os lampiões e tirar água do poço.
Os pinheiros e os cedros à beira do caminho pareciam grandes monstros escuros invadindo o meu sono e o meu cansaço.
As casas eram poucas e esparsas e a estrada fora aberta pelos passos dos caminhantes habituais. Era uma trilha na vegetação rasteira.
Fazia frio, mas estávamos aquecidas pela caminhada. Minha mãe vestia um casaco de lã quadriculado miudinho, as abas, no lugar de bolsos e a gola eram de veludo bordô. Ela pendurara nos ombros a minha lancheira de papelão marrom e me puxava pela mão. Eu tinha entre quatro e cinco anos de idade.
A mãe era professora primária e naquela tarde dispensara os seus alunos mais cedo para ir na Secretaria de Educação receber o seu salário. Mais tarde iríamos todos no aniversário de minha avó Aline.
A história foi certamente repassada pelos alunos quando chegaram em casa um pouco antes da hora habitual:
- Hoje é o dia de pagamento da professora.
Distingui, ao longe, um vulto virado de costas perto de um pinheiro e mostrei pra minha mãe:
- O homem está fazendo xixi - disse ela tranqüila.
Andávamos em silêncio, olhando para frente. Já avistávamos, não muito longe, a nossa casa, aberta e iluminada.
Quando eu me sentia insegura eu olhava no rosto da minha mãe para captar a sua segurança e ela segurava a minha mão bem firme e me mandava fechar os olhos. De olhos fechados eu atravessava as ruas do centro da cidade, também de olhos fechados e segurando a sua mão eu enfrentava as ondas maiores, em direção às águas mais fundas, na praia de Matinhos.
- Pode fechar os olhos! - estas palavras me traziam a escuridão abençoada que apagava o medo e o perigo.
Depois de tentar explicar um pouco a magia transmitida pela minha mãe, volto àquela noite iluminada pelas estrelas e caminho sonolenta, sentindo a grama úmida sob os pés e o calor das mãos de minha mãe nas minhas.
Senti um medo repentino (ou teria sido um vento frio?) e procurei o rosto da minha mãe pra me sentir segura e poder fechar meus olhos. Foi quando vi o homem atrás dela. Percebi então que tinha que manter meus olhos bem abertos, pois, desta vez, o perigo era real e minha mãe não percebera .
O homem era magro, estatura mediana, usava um paletó marrom de risquinhas e um chapéu escuro enterrado na cabeça. Um lenço tenebroso escondia o seu rosto, como nos melhores filmes de cow-boy.
Com uma das mãos ele tapou a boca de minha mãe e com a outra procurou os bolsos inexistentes no casaco. Quando tentou arrancar a lancheira do seu braço, ela caiu pra trás bem em cima dele e ficaram, por instantes, disputando a minha lancheira vazia.
Desesperadas, minha irmã e a minha prima correram aos gritos em direção da nossa casa.
Minha mãe se levantou rapidamente e tentou agarrar o ladrão, mas ele fugiu. Ela correu em seu encalço, mas ele se embrenhou entre uns pés de macaqueiro e sumiu dentro da noite.
Os gritos acordaram os poucos vizinhos. Alertados, apareceram também uns guardas da Penitenciária Provisória que era próxima. Dentro deste tumulto, esqueceram de mim...
Eu não me lembro como cheguei até em casa. Só me vejo já sentada num degrau da escada e percebendo que não podia falar. Todas as palavras tinham fugido de minha cabeça, eu não conseguia articular nenhum som e nem pensar em nada, apenas percebi que não sabia mais falar. Como ninguém notou, eu fui dormir.
Dias mais tarde, encolhida embaixo da mesa da sala, escutei a minha mãe comentar com as suas irmãs, no meio de uma conversa:
- Depois daquele susto esta menina não falou mais!
Foi um comentário tão calmo e corriqueiro que me fez concluir que não devia ser grave e que, dia mais dia a menos, eu ia me lembrar como é que eu fazia pra falar.
Eram tempos de um copo de água com açúcar!
Estado de choque, só mesmo se a gente colocasse o dedo da tomada ou num fio de luz descoberto. Trauma, afasia eram palavras desconhecidas e por isso não podiam nos atingir com suas definições e conceitos.
E, depois, se a nossa própria mãe achava que não era nada, o que é que haveria de ser?
Hoje eu sei que jamais serão criadas palavras que possam exprimir uma ameaça objetiva à integridade da pessoa mais importante na vida de uma criança.
Cada vez que vejo este homem sem rosto em minhas costas, de onde ele nunca mais saiu, eu não consigo gritar por socorro, mas pouco importa, porque eu sei que a Mãe, com sua coragem, também está presente e vai pô-lo pra correr. Aprendi que as palavras, apesar de estarem sempre disponíveis, muitas vezes não têm nenhuma importância, porém ao ignorá-las poderemos sentir sensações pessoais, profundas e inenarráveis como tais como o pânico ou a felicidade
Foi um comentário tão calmo e corriqueiro que me fez concluir que não devia ser grave e que, dia mais dia a menos, eu ia me lembrar como é que eu fazia pra falar.
Eram tempos de um copo de água com açúcar!
Estado de choque, só mesmo se a gente colocasse o dedo da tomada ou num fio de luz descoberto. Trauma, afasia eram palavras desconhecidas e por isso não podiam nos atingir com suas definições e conceitos.
E, depois, se a nossa própria mãe achava que não era nada, o que é que haveria de ser?
Hoje eu sei que jamais serão criadas palavras que possam exprimir uma ameaça objetiva à integridade da pessoa mais importante na vida de uma criança.
Cada vez que vejo este homem sem rosto em minhas costas, de onde ele nunca mais saiu, eu não consigo gritar por socorro, mas pouco importa, porque eu sei que a Mãe, com sua coragem, também está presente e vai pô-lo pra correr. Aprendi que as palavras, apesar de estarem sempre disponíveis, muitas vezes não têm nenhuma importância, porém ao ignorá-las poderemos sentir sensações pessoais, profundas e inenarráveis como tais como o pânico ou a felicidade