quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Beliscão de Defunto - Sobre crianças agredidas

Eu, aos 5 meses.
I

O jornal da manhã da TV Record é mais um programa policial do que um jornal. Nunca assisto para não começar o meu dia impregnada de tragédias urbanas.

Hoje a televisão estava ligada e acabei vendo a primeira matéria. Era sobre agressões feitas por uma empregada e por uma babá. A primeira em um excepcional e a segunda em duas crianças pequenas.
As agressões foram documentadas por câmeras colocadas em um ponto estratégico das casas e filmaram cenas deprimentes.
Desliguei a televisão.

II

Minha mãe lecionava e como eu nasci seis anos depois de minha irmã mais velha, devo tê-la sobrecarregado de serviço e alterado a sua rotina doméstica.

Não existiam empregadas domésticas, nem babás no Ahu: o bairro pobre onde nasci e cresci e onde moravam apenas operários italianos e suas famílias.

Minha mãe não tinha muitas opções, precisava trabalhar e não tinha com quem me deixar.
Quando eu tinha menos de um ano ela ficou sem nenhum parente pra me atender e foi impedida - por uns tempos - pela direção, de me levar junto para escola, onde eu, praticamente, me criei. Ela então deve ter recorrido a alguém que mal conhecia para me cuidar.

Minha mãe costumava contar esta história da qual não tenho lembranças conscientes. Não contava para provocar auto piedade ou para que eu me sentisse uma pobre criança vítima de agressão, ela contava apenas para exaltar o poder e a força de suas palavras.

Segundo a mãe, a tal babá se chamava Anita e era uma jovem morena de belíssimos dentes.

Minha mãe percebeu que depois de ter sido entregue aos cuidados da Anita, eu comecei apresentar edemas e manchas roxas, improváveis em uma criança que ainda não andava.
Questionada, a babá respondeu que eram:
- Dio mio! “Beliscões de defunto”!

Beliscões de defunto era uma expressão muito usada no Ahu para nomear estas manchas que aparecem em nosso corpo, pelo rompimento de pequenas veias, causado pelo estresse ou por alguma crise emocional.

III

Parênteses:
Eu continuo tendo estas nódoas escuras na cabeça, tronco e membros, mas não são “beliscões de defunto”, elas são causadas pela minha forma desatenta de me conduzir pela vida.
Estou sempre sendo atingida pelas quinas de móveis que estão há anos parados no mesmo lugar, mas que parecem estar sempre vindo em minha direção causando topadas, joelhadas, cabeçadas... Trombadas de modo geral.
IV

Fecho o parênteses e volto à pequena Nédier e à sua babá, que, conforme enfatizava minha mãe, tinha bons dentes, o que era raro no Ahu daquela época.

Em uma tarde, de volta da escola, minha mãe percebeu a marca inconfundível dos lindos dentes de minha babá nos meus braços.
A moça não podia alegar “mordida de defunto” porque no Ahu os defuntos beliscavam, mas não mordiam.
Impotente diante do fato, sem câmeras para flagrar os maus tratos, sem testemunhas para comprová-los, minha mãe fez o que costumava fazer quando não tinha uma solução ao seu alcance: - rogou uma praga.

Contava a minha mãe que no dia seguinte a pobre apareceu com um pano que passava por baixo do queixo e era amarrado por um nó no alto da cabeça, e só apareceu para dizer que não ia mais.

A mãe terminava este relato - poderosa - contando que a moça estava com o rosto deformado pelo inchaço provocado por uma repentina infecção dentária.

V
Eu também, como a personagem Juma Marruá, da re-lançada novela "Pantanal", só viro onça quando estou com raiva. Nunca mordi, mas como minha mãe, eu rogava pragas e as “pragas” rogadas por mim “pegavam” de forma assustadora causando danos, muitas vezes, irreparáveis no seu alvo. Por esta razão passei a ter muito critério e muito cuidado antes de lançá-las no ar e depois não poder recolhê-las novamente.

Hoje, tendo absoluta confiança na lei do retorno, em vez de rogar pragas e arcar com o retorno delas, só fico esperando pra ver o que acontece com quem tentou me prejudicar ou prejudicar os meus filhos.

Nédier