domingo, 19 de outubro de 2008

Eloá e Nayara - Réquiem para as mulheres

Requiem para as mulheres
Sônia van Dijck

Não tive filha.
Durante a semana, acompanhei, em minha imaginação, graças ao noticiário, a angústia das famílias de Eloá, de Nayara e de Lindemberg.
Pensei sempre nas mães impotentes diante da tragédia.
Em relação à mãe de Eloá, pensei que via sua filha transformada em objeto de posse de um macho monstruoso, incapaz de aceitar não ser amado, mas sentindo-se com direito de vida e morte sobre a mulher desejada que o rejeitou.
Em relação à mãe de Nayara, pensei que essa mulher tem uma filha que é um ser superior, capaz de enfrentar o absurdo para ficar perto da amiga e com ela ser solidária - se eu tivesse tido filha, queria que fosse como Nayara.
Pensei na mãe de Lindemberg em seu pasmo ao descobrir que pariu um monstro e que criou, cuidou e alimentou um macho estúpido, possessivo, frio, perverso, que não sabe ouvir um "não" de uma mulher - dela, tive profunda piedade e gostaria de poder consolá-la em seu desespero, em sua desilusão de tão vítima do machismo quanto a menina Eloá - consola-me a certeza de que sua família irá confortá-la em sua profunda decepção diante do macho que trouxe ao mundo.
Mas, espanta-me o viés vicioso da sociedade brasileira, cuja voz se traduz na imprensa e nas emissoras de TV.
Desde que, no fim do dia 17, o desfecho trágico previsível foi conhecido, toda a imprensa (apesar de noticiar o estado das meninas vítimas do macho-monstro), passou a dedicar tempo para acusar e discutir se a polícia podia ou não permitir que a menina Nayara voltasse ao apartamento, se a polícia invadiu na hora certa o apartamento, se os disparos aconteceram ou não antes de a polícia explodir a porta e invadir o apartamento, se a polícia deveria ou não ter colocado drogas capazes de dopar o criminoso, se a polícia deveria ou não ter alvejado o criminoso.
E é possível que a imprensa e as TVs estejam apenas sendo fiéis à voz das ruas (opinião pública). Como sempre, não se discute o ato criminoso e nem a culpa do bandido - apesar de ser obrigação de todos o andar conforme a Lei.
A discussão foi, comodamente, desviada para a periferia do crime publicamente praticado: um macho que não aceitou ser rejeitado pela namorada, resolveu impor seu direito de vida e morte sobre a mulher que lhe disse "não" - os episódios havidos não estavam no scripit do bandido (colegas rapazes no apartamento, a melhor amiga de Eloá no apartamento, na hora de sua imposição de macho imbecil e obcecado pela posse de sua presa Eloá).
No Brasil não se discute e não se apura o crime.
A regra é discutir e instaurar inquérito para apurar se o delegado agiu certo, se os policiais abusaram do poder. Por isso, Dantas e outros criminosos estão impunes. Somos especialistas em investigar operações policiais; jamais nos interessam o crime cometido e os criminosos.
Nayara vai se recuperar do tiro recebido - não esquecerá o que viveu. Eloá está morta - melhor do que ter uma vida vegetativa. E ninguém parece interessado em discutir o direito do macho, imbecil e violento em sua impotência de conquistar uma mulher, usar o direito de vida e morte sobre seu objeto de pretensa posse.
É mais cômodo para a sociedade machista ficar discutindo, via imprensa e TVs, se a polícia errou ou acertou nessa ou naquela decisão, do que tratar da questão central: tem o macho direito de ser proprietário da vida da fêmea desejada, em se tratando da sociedade dos seres humanos e não de um bando de aves ou manada de bùfalos? - aliás, aves, búfalos e outros animais têm respeito pelas fêmeas (não podem ser eliminadas, pois delas depende a garantia da sobrevivência da espécie).
A amiga solidária Nayara sobreviveu. Eloá, a namorada que disse "não" a Lindemberg está morta.
Que direito tinha/tem Lindemberg sobre a vida de Eloá ou de outra mulher que o recuse?
Por que o macho se sente dono da vontade da mulher que ele deseja?
Lindemberg teve cerca de 100 horas para refletir e decidir - e o macho recusado decidiu matar a mulher que não o queria.
Ou a sociedade (via imprensa e TVs) discute o direito de vida e morte do macho sobre a mulher ou continuaremos a ter casos de ex-namoradas, ex-noivas, ex-amantes, ex-esposas assasinadas por machos que não sabem ser Homens.
Maria da Penha sobreviveu, na cadeira de rodas, para ser testemunha e símbolo da violência da sociedade machista.
Jamais educaremos nossos meninos para respeitar a vontade das meninas, se continuarmos a discutir que a polícia agiu certo ou errado ao tentar conter um monstro - o criminoso terá, diante da sociedade dos machos, sua responsabilidade dividida com os erros e acertos da polícia. Isso é fugir do problema central por comodismo de machos.
No caso em foco, Lindemberg premeditou mesmo eliminar Eloá porque ela jamais seria sua presa - ele invadiu o apartamento disposto a se apropriar de sua caça, seu objeto de desejo, seu troféu de macho - saiu no lucro: atirou em duas fêmeas - para invadir, levou 2 armas e munição.
Não sou politicamente correta e nem pretendo ser tal coisa. Sou mulher e não tive filha. Mas, posso supor a dor da mãe de Eloá e a angústia da mãe de Nayara. Quase que consigo sentir o desespero da mãe do criminoso Lindemberg - perdeu o filho duas vezes:
1) será julgado, condenado e ficará preso;
2) descobriu que faz 22 anos que pariu um monstro sem saber.
Lembra-me o filme "O bebê de Rosemary" - é um monstro e, ainda assim, pode ser amado pela mãe...
A mãe de Nayara terá o orgulho da coragem e da solidariedade da filha.
A mãe de Eloá terá o consolo do pranto.
A mãe de Lindemberg terá o desespero de ser sua mãe.
Nossa sociedade vai continuar discutindo a periferia do crime e jamais dirá que o macho não tem direito de vida e morte sobre a mulher, apesar de a Lei dizer, FORMALMENTE, o contrário.
Nossa sociedade, jamais dirá que corrupto é criminoso. Que macho violento é crimnoso. Seguirá a tradição de investigar como o crime foi resolvido, a periferia do crime.
Antecipo minhas condolências às mães das próximas vítimas.
Quem discordar de mim, faça o exercício de se imaginar no lugar da mãe de Eloá - a menina-mulher que disse "não" a um macho que queria ser seu dono e senhor. Se for pai, pense na dor do pai da menina-mulher Eloá e na dor do pai do monstro - ele pensou que fez amor com sua esposa e que tinha gerado um filho Homem.