quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Baseado em fatos quase reais./sem revisão - Um conto fantástico de AroldoCorrea

A ARTE DE IR

não parte
es_vai-te.
l e n t a m e n t e . . .
Rosane
imagem: abandono os sonhos nas ruas desertas
(carla salgueiro)* abril/2006 *
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Baseado em fatos quase reais./sem revisão

Aroldo Correa


Ao entardecer raios e trovões ainda distantes anunciavam tempestade extemporânea.

Muniz encontrava-se deprimido.

Nos últimos tempos esse seu estado era recorrente. Mas, uma vez deprimido cultivava aquela situação, sentia-se bem e numa espécie de realimentação aprofundava-se cada vez mais e isso lhe fazia melhor, era aquela sensação de estado febril, quando a quietude e um agasalho quase transportam à felicidade.

Porém, naquele tarde, Muniz resolveu reagir ao mergulho e antes de ligar a tv, subiu ao banheiro do seu quarto, retirou um pequeno frasco do armário e desceu as escadas com uma dominante letargia prestes a torpor, mas estava firme,reagiria.

Passou pela cozinha, bebeu uma dose de uísque, pegou da geladeira uma garrafa pequena de água mineral magnesiana e, da mesinha da sala, o velho cachimbo já preparado.

Sentou-se na cadeira de balanço, cobriu as pernas com uma manta presenteada há tempos pela única irmã quando por uma de suas visitas cada vez mais raras.

Do pequeno frasco retirou e engoliu com um pouco da água mineral uma drágea contendo lítio, prescrito pelo psiquiatra desde o agravamento dos surtos depressivos. Em seguida, depois de várias tentativas acendeu o cachimbo. Devolveu o isqueiro à mesa, tomou o controle remoto. O celular toca. Sem verificar o número de origem, atende ao telefone com a mão esquerda e, ato reflexo, aperta simultaneamente as teclas de completar chamada do aparelho e de "on" do controle remoto da tv.

Uma luz azul néon intensa clareou aquela sala pouco iluminada durante uns vinte e cinco a trinta segundos.

O vizinho da casa emfrente estava a passear com o seu cão e, então de costas, voltou-se diante da inquietude do animal e ainda percebeu a luz azul se desvanecendo pelas frestas da janela e deu pouca importância, devia ser do isqueiro.

A vida naquela pequena rua sem trânsito era bucólica.

Os idosos que ali feneciam não a alteravam em nada por suas ausências temporárias ou permanentes.

Muniz não era idoso, apesar de aposentado do serviço público municipal, foi fiscal de posturas.


Passados vários dias, sem respostas às ligações telefônicas, Lia, a irmã, resolveu verificar e numa manhã foi até a casa que também não atendia as insistências da campainha e, diante das portas trancadas restou-lhe a ajuda dos Bombeiros.
O Soldado de um só golpe de machado pos abaixo a porta dos fundos, também trancada por dentro. Na sala quieta, sem qualquer odor diferente do esperado, Lia, logo após o Oficial Bombeiro, deparou com um cenário desconcertante e inverossímil se ali tal não testemunhasse.


A TV estava ligada, o cachimbo caído com o fumo mal queimado espalhado pelo chão frio de cerâmica, o controle remoto também no chão com a tampa e pilhas separadas.

Intactos por sobre a cadeira de balanço estavam o pijama, com sua parte superior colada ao encosto e, no assento, a manta sobre a calça cujas pernas terminavam nos chinelos de couro.


Poucas cinzas eram percebidas nos braços da cadeira, outras poucas perto dos chinelos e menos ainda sobre as roupas.

Não havia qualquer água na garrafa ou no copo e as drágeas de lítio continuavam no frasco sobre a pequena mesa.

Os Bombeiros, homens experientes submetidos a situações extremas, deixaram-se se quedar atônitos.

Lia nada falava, não ouvia, petrificada e olhar fixo, foi retirada pelo Oficial e levada para fora da casa, na qual não permitiu que alguém mais adentrasse alem do Soldado do machado.

Pelo telefone, preferiu não usar o rádio, chamou o Comandante do quartel e tentou explicar e, sem sucesso na exposição, sugeriu ao superior, logo prontificado, a comparecer só ao local da ocorrência.

Pelo caminho, em seupróprio veículo, o Comandante rebuscou na memória relatos equivalentes, porém nada lhe ocorreu além de fragmentos historiados dos mais possíveis fenômenos que muito lhe perturbaram a adolescência, entrou na casa, onde estava o Soldado do machado ainda sem encontrar o chão, seguido do Oficial.

Depois de vários e longos minutos desilêncio, o Comandante convocou o médico de plantão do quartel e, da mesma forma a preservar o episódio insólito solicitou-lhe que comparece ao local sozinho. Os três, após uma hora e meia de confabulação, concluíram manter o incidente restrito ao grupo, qualquer explicação seria insatisfatória e a ridícula repercussão, danosa e incontrolável. Precisavam que a irmã concordasse.

Lia nos fundos da casa, sentada sobre uma pedra, não respondia a qualquer estímulo.

O Médico sem dizer palavra injetou-lhe medicamento intravenoso que rapidamente lhe restituiu o ânimo e ela surpreendentemente tornou-se loquaz e racional.

Acertaram com o Médico da corporação um atestado de óbito de um cadáver por morte súbita, sem possibilidade de abertura do caixão devido aos dias decorridos. Foi cremado.
Baseado em fatos quase reais.

Aroldo.

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Escrito em 26 de agosto de 2008 para o Grupo "Conversa de Botequim"