quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Em defesa de empresa acusada de manter 1.064 trabalhadores em condições degradantes, senadores levam fiscais a suspender fiscalização em todo o país

Impulso para o trabalho escravo

Em defesa de empresa acusada de manter 1.064 trabalhadores em condições degradantes, senadores levam fiscais a suspender fiscalização em todo o país

Lúcio Lambranho e Edson Sardinha


Depois de segurar por três anos a votação da chamada PEC do Trabalho Escravo, aprovada em primeiro turno na Câmara em agosto de 2004, o Congresso conseguiu agora nada menos do que suspender as ações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), responsável desde 1995 pelo resgate de 25 mil trabalhadores que se encontravam em situação análoga à de escravos.

Após os ataques da bancada ruralista no Senado aos fiscais que libertaram, em junho, 1.064 trabalhadores mantidos em condições análogas à escravidão na fazenda da Pagrisa (Pará Pastorial e Agrícola S/A), principal produtora de álcool e açúcar do Pará, a secretária de Inspeção do Trabalho, Ruth Vilela, determinou anteontem (25), sob forma de protesto, a suspensão das atividades do grupo móvel.
Ruth alegou que, diante da pressão, os servidores corriam risco de morte.
A crise, deflagrada pela visita de uma comissão de senadores à fazenda em Ulianópolis (PA), levou ontem (26) o ministro do Trabalho, Carlos Luppi, ao Senado. A comissão externa foi criada para apurar a denúncia feita pela empresa, que alega inocência, de que houve abuso por parte dos fiscais na autuação (leia a versão da empresa).

Em defesa do grupo móvel, Luppi entregou ao senador José Nery (Psol-AL), presidente da Subcomissão Temporária do Trabalho Escravo, subordinada à Comissão de Direitos Humanos, os 18 volumes do relatório da ação na Pagrisa. E rebateu as críticas dos senadores que desqualificaram a maior libertação de trabalhadores já feita pelo ministério.

"Eles só foram à usina e não ao canavial, distante uma hora de caminhada", disse o ministro em referência à visita dos senadores no último dia 20.
"Essa ação resultou na desqualificação de um trabalho brilhante", completou.

A empresa alega que houve exagero por parte dos fiscais e que, em função disso, já acumula prejuízos, com a decisão da Petrobrás e da Ipiranga de suspenderem a compra de álcool da Pagrisa.

Confronto no Senado
A repercussão negativa da suspensão das fiscalizações fez ontem a comissão externa recuar.
Os senadores aprovaram requerimento pedindo ao Ministério do Trabalho a retomada imediata dos trabalhos de fiscalização do grupo móvel.
O colegiado ainda aprovou a convocação de 22 autoridades envolvidas com a questão, inclusive o próprio Luppi, e prometeram continuar a apuração do caso na próxima semana.

Além de abrir uma crise entre o Senado e o Ministério do Trabalho, o episódio acentuou as divergências entre os parlamentares da bancada ruralista e aqueles que defendem os pequenos produtores rurais.

Os primeiros são liderados pela senadora Kátia Abreu (DEM-TO), relatora da comissão externa criada para apurar o caso, e pelo senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), autor do requerimento que criou o colegiado.
Além de Nery, saíram em defesa do grupo móvel os senadores Sibá Machado (PT-AC), Eduardo Suplicy (PT-SP), Paulo Paim (PT-RS). Cristovam Buarque (PDT-DF) e Patrícia Saboya Gomes (PSB-CE), integrantes da Subcomissão Temporária do Trabalho Escravo.
Abuso de poder
Kátia, que liderou o grupo de senadores que visitou a fazenda da Pagrisa dois meses após a libertação dos trabalhadores pelo Ministério do Trabalho, disse não ter encontrado no local nada que pudesse ser considerado degradante. Pelo contrário. Na avaliação dela, se houve irregularidade, foi por parte dos fiscais.

"Há indícios de abuso de poder", afirmou a relatora da comissão.
O senador Romeu Tuma (DEM-SP), outro a participar da visita, também disse não ter visto nada que comprometesse a Pagrisa, mas adotou um discurso mais cauteloso.
"É necessária uma perícia da Polícia Federal para saber se algo foi maquiado entre a fiscalização e nossa visita na semana passada", ponderou.

Criticado pelos senadores que inspecionaram a fazenda, Luppi não se encontrou com os integrantes da comissão externa. Mas se comprometeu com os senadores da Subcomissão do Trabalho Escravo a tentar convencer os fiscais a retomarem os trabalhos.
"Já agendei uma nova conversa com os auditores e vou tentar convencê-los a retomar os trabalhos na próxima semana", declarou.

PEC abandonada
A crise detonada pelo caso Pagrisa também revela a insatisfação de parlamentares da base governista com a postura do Palácio do Planalto em relação à erradicação do trabalho escravo no país.
A principal crítica diz respeito ao desinteresse do governo pela aprovação da PEC do Trabalho Escravo, em tramitação no Congresso desde 2001.
Para o relator da proposta, o deputado petista Tarcísio Zimmermann (RS), o governo abandonou a defesa da PEC por causa da pressão dos ruralistas que integram a base governista (leia mais).
“É evidente que não há mais a prioridade dada pelo governo no primeiro mandato do presidente Lula para erradicar o trabalho escravo”, afirmou ao Congresso em Foco.
O texto da PEC, aprovado em primeiro turno na Câmara em 2004, prevê que as propriedades rurais e urbanas em que forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo serão desapropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem indenização ao proprietário, após sentença judicial transitada em julgado.

Os bens de valor apreendidos, decorrentes da prática de trabalho escravo, rural ou urbano, serão destinados a um fundo especial, cuja aplicação dos recursos será disciplinada por lei infraconstitucional.

Na mira da Justiça Independentemente do que render a polêmica no Senado, os donos da Pagrisa, os irmãos Murilo, Fernão e Marcos Villela Zancaner, vão responder a processo penal por utilizar mão-de-obra em situação análoga à de escravo, por não seguir a legislação trabalhista e impor perigo à saúde dos trabalhadores.
Os empresários, por sua vez, negam que mantenham os seus funcionários em condições degradantes.

A denúncia do Ministério Público Federal (MPF) foi aceita na segunda-feira (24) pela juíza Carina Cátia Bastos de Senna, da Subseção Judiciária Federal de Castanhal, no Pará.
A juíza acatou os indícios apresentados pelo grupo móvel do MTE. "Indícios de uma possível prática de trabalho escravo”, diz a juíza em sua sentença.
“Os acusados terão a oportunidade de descaracterizá-las”, completou a magistrada ao decidir sobre o pedido do MPF, que sugere pena máxima de 15 anos para os donos da fazenda.
Até agora, a Pagrisa não foi ouvida, destacou a magistrada.Segundo o relatório do grupo móvel, o pagamento de salários, “da forma como era feito pela empresa, feria de morte a dignidade dos obreiros.”
Os fiscais também afirmam que chegaram ao grupo de fiscalização contracheques zerados ou com valores irrisórios, “que em alguns casos não chegavam a R$ 10,00 (dez reais)”.

Abusos e contradições
“A situação que os fiscais encontraram eram semelhantes àquelas retratadas pela minissérie Amazônia”, comparou o ministro do Trabalho, Carlos Luppi, durante audiência na Subcomissão do Trabalho Escravo em referência à situação dos seringueiros retratados pela TV Globo.

“A empresa não garantia o salário mínimo aos empregados que recebiam por produtividade. Tal fato, somado aos descontos de alimentação e de medicamentos que os empregados consumiam, fazia com que, em muitos casos, empregados recebessem apenas o suficiente para pagar os seus gastos com comida e medicamentos”, diz o relatório dos fiscais.

Mas a relatora da comissão externa, senadora Kátia Abreu, disse que os trabalhadores da fazenda paraense estavam devidamente registrados.
“Vimos comprovantes de pagamentos que variavam entre R$ 750 e R$ 900. Os comprovantes zerados apreendidos pelos fiscais aconteceram por problemas de informática”, argumentou a senadora do DEM.

Histórico de irregularidade
O Congresso em Foco teve acesso a um documento com o histórico de fiscalizações na fazenda Pagrisa. O documento mostra, em seu resumo, que houve 13 fiscalizações entre 1998 e 2007 e destaca:
"Em relação às ações fiscais desenvolvidas no cultivo de cana durante a safra, foram encontradas irregularidades no cumprimento da legislação em 100%”.
O relatório informa que não havia fornecimento de água potável em condições higiênicas.
Aponta ainda “a não-manutenção de instalações sanitárias adequadas, em 100% das ações fiscais que envolveram itens de segurança e saúde.” Segundo os fiscais, a partir da ação fiscal de junho de 2004, a situação na fazenda, em vez de melhorar, agravou-se:
“Passa a ser observado o descumprimento de outros atributos trabalhistas: jornada, descanso, salário, FGTS, contribuição social e CAGED. Por outro lado, violação a uma ou mais normas de segurança e saúde foi encontrado em 100% das vezes em que foi verificado seu cumprimento, a partir de 11.2001.”

Uma fiscalização realizada em dezembro do ano passado, diz o documento, “apontou irregularidades no cumprimento não somente da legislação referente a esses aspectos, mas também quanto ao recolhimento de FGTS e pagamento de salários”.

Lista suja
O cenário traçado pelo Ministério do Trabalho na Pagrisa está longe de ser raridade no Brasil, principalmente no Pará, estado que concentra o maior número de autuações por exploração de mão-de-obra em condições análogas à de escravo. Das 188 empresas incluídas na última edição da chamada “lista suja”, do Ministério do Trabalho, 47 são paraenses (veja a relação completa).
Além disso, garante o advogado Marco Apolo, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) e do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), apenas metade das denúncias é investigada no Pará.
Segundo o advogado, seria preciso dobrar as ações do grupo móvel para dar conta do número de irregularidades cometidas por empresas rurais no interior do estado.
"O Pará é o maior importador de mão-de-obra escrava. São pessoas que não têm como reagir, pois estão isoladas, fora de seu convívio social e em áreas de difícil acesso. Não há recursos suficientes, atualmente, para dar conta de todo o problema", explica Apolo.

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