Uma última visita à prisão da guerra contra o terror
Matthias Gebauer
Em Guantánamo
As ervas daninhas já estão crescendo desenfreadamente no notório "Campo Raio X" e o presidente eleito Barack Obama planeja fechar todo o complexo de detenção de Guantánamo. Agora o Pentágono está convidando os jornalistas a visitar o campo uma última vez.
Alguém poderia imaginar que uma viagem à mais conhecida e notória prisão do mundo seria uma experiência desagradável. Todos conhecem as histórias de horror de Guantánamo: como os prisioneiros foram acorrentados no vôo para Cuba, como chegaram ao campo semicongelados, com olhos vendados e completamente desorientados. Eles não sabiam onde estavam na época, e muitos deles ainda estão lá, na prisão onde os Estados Unidos mantêm seus suspeitos de terror.
Um grupo especial embarcou recentemente em uma viagem para Guantánamo, que provaria ser significativamente mais confortável. O grupo se reuniu nas primeiras horas da madrugada na Base Andrews da Força Aérea, fora de Washington, onde um vôo fretado da American Airlines já estava esperando. O destino, com um código de aeroporto NBW e afastado da regra da lei constitucional americana, é conhecido apenas como GTMO no jargão militar. O cartão de embarque foi o primeiro dos muitos suvenires interessantes da viagem.
Seu propósito real era o julgamento do 11 de Setembro. Mas além de especialistas em terrorismo, desta vez o porta-voz do Pentágono, Jeffrey D. Gordon, também convidou um grupo de novatos internacionais em GTMO, que ainda não noticiaram do tribunal. Jornalistas do Brasil, Japão, Dubai, França, Espanha, Israel e Arábia Saudita aproveitavam o que Gordon chamava de "a última chance de ver o campo".
Viagens da imprensa para GTMO não são incomuns. A viagem, que ocorre apenas semanas após 4 de novembro -o dia em que Barack Obama, que prometeu fechar o campo, venceu a eleição presidencial americana- parecia um último esforço desesperado de relações públicas. Com um programa pleno, incluindo uma visita por famílias seletas das vítimas do 11 de Setembro, o Pentágono está lutando pela reputação do campo, uma reputação que perdeu há muito tempo.
A bordo do Boeing 757 para Guantánamo, era difícil não pensar nas abduções da CIA para o campo de detenção dali, apesar de nada na aeronave lembrar minimamente algo daqueles vôos. Em vez de pernas acorrentadas havia espaço para as pernas, em vez de sedativos havia um sanduíche de peru, e em vez de capuzes escuros, fones de ouvido foram distribuídos para que os passageiros pudessem assistir ao filme "Hancock", estrelado por Will Smith.
"Bem-vindos ao nosso vôo para Guantánamo", anunciou um tripulante, "espero que vocês apreciem o vôo".
Férias de sonho
Por que GTMO é tão popular entre os soldados fica rapidamente óbvio após a chegada. Em vez de arame farpado e torres de presídio, o visitante encontra uma típica cidade pequena americana, incluindo a única loja do McDonald's de propriedade do governo, que vende hambúrgueres subsidiados, um cinema ao ar livre, um campo de golfe e várias escolas de iatismo e mergulho.
Em GTMO, não há nada que impeça os soldados de transformar suas estadias de seis meses em férias dos sonhos. Em vez de sinalização exibindo os níveis de alerta de terror, onipresentes nos Estados Unidos, a sinalização em Guantánamo mostra a temperatura atual do ar e da água. É possível nadar, navegar e mergulhar o ano todo. Outro elemento popular entre os soldados é o fato de que até mesmo álcool é permitido na base.
Ao término de seu dia de trabalho, os soldados podem beber uma cerveja gelada no O'Kelly's, um pub irlandês, ou jogar bingo ao lado. O clube dos oficiais oferece um jantar um tanto mais refinado. O restaurante Jerk House serve pratos picantes, enquanto o Tikki Bar à beira-mar é o lugar ideal para agentes da CIA se encontrarem para um drinque após os interrogatórios. Mas nossa viagem não envolvia férias, apesar do comandante Gordon, geralmente trajando bermuda e camiseta, ter elogiado muito as visitas à praia. Os repórteres estavam mais interessados nas visitas ao campo, que, por motivo de espaço, eram limitadas a 10 pessoas por vez. Como colegiais em uma excursão escolar, jornalistas respeitáveis brigavam pelas chamadas "visitas além do arame farpado" -ao Campo Delta, o notório campo de detenção.
Algumas poucas assinaturas foram exigidas antes que as visitas pudessem começar. Uma lista de cinco páginas do que podia ou não ser fotografado ou escrito foi entregue. As torres de vigilância sem pessoal ou o oceano atrás do campo de detenção, por exemplo, são tabu. O formulário termina com uma nota de que os censores militares estão autorizados a apagar todas as imagens nas câmeras e, se necessário, todo o conteúdo do disco rígido de um laptop.
'Moderno e humano'
A visita começou pelo campo que tornou GTMO mundialmente famosa: o Campo Raio X, um símbolo do sistema injusto instalado nos Estados Unidos após o 11 de Setembro de 2001. Foi para lá que os primeiros suspeitos de terrorismo, que chegaram do Afeganistão no final de 2001, foram aprisionados, colocados em celas pequenas, com menos de dois metros quadrados, cobertas de arame farpado, sem toalete.
As imagens do Campo Raio X foram vistas ao redor do mundo, fotos de prisioneiros em macacão laranja, ajoelhados, vendados, no chão. Hoje o campo, que foi abandonado em 2002, parece um grande canil. O mato está na altura do joelho e as cercas cresceram demais. Nosso guia preferiu falar sobre as cobras locais em vez dos prisioneiros. O homem estava suando. Ainda estava insuportavelmente quente, mesmo no final do outono.
O Exército americano bem que gostaria de ter demolido o Campo Raio X o mais rapidamente possível, mas um juiz federal ordenou que fosse deixado intacto, caso seja necessário como evidência para algum futuro julgamento de abuso contra prisioneiros. As celas de interrogatório foram esfregadas até ficarem limpas, e até mesmo as tomadas e interruptores de luz foram removidos. Os únicos lembretes de 2002 são as pichações deixadas pelos soldados, incluindo caveiras e frases como "guerreiros da noite".
O Campo Delta, onde os detidos atualmente são mantidos, fica a apenas 10 minutos de carro do Campo Raio X, passando por um campo de golfe. Uma placa no portão avisava o "valor da semana". O valor da semana para os soldados estacionados ali era "respeito". Os guardas checaram nossos passes individualmente. O motorista nos instruiu a não tirar nenhuma foto dos guardas.
Obediente, cooperativo ou resistente
O comandante dos 2.200 soldados, o almirante David Thomas, chamou as novas instalações de "a prisão mais moderna e humana do mundo". O Campo Delta é dividido em seis seções. As seções I a III são reservadas aos obedientes e cooperativos, o "Campo IV" para os mais ou menos cooperativos e as duas seções restantes para os prisioneiros resistentes.
Também há vários campos especiais. "Detidos de alto valor" - líderes terroristas como Khalid Sheikh Mohammed - estão internados no "Campo VII" (até mesmo o nome é confidencial). A localização do campo é um segredo de segurança nacional. O "Campo Ecco", recentemente montado para visitas de advogados, e o "Campo Iguana", onde fica a maioria dos suspeitos inofensivos, são menos secretos.
O Campo IV, como apresentado pelo diretor da prisão, um comandante sorridente da Marinha, parece mais um reformatório do que uma prisão, completo com mesas de pebolim (totó), equipamento de ginástica e tabuleiros de xadrez. Fotos das montanhas do Afeganistão e da mesquita azul em Mazar-i-Sharif estão penduradas nas paredes nas pequenas salas de aula com ar condicionado. As correntes sob as mesas de metal são o único lembrete do verdadeiro propósito do lugar.
As aulas, oferecidas em várias línguas - inglês, dari e pashtu - são tratadas como "estímulo intelectual", para que os prisioneiros possam ter algo o que fazer e não se sintam inúteis, como disse o comandante.
Os uniformes da prisão são dobrados cuidadosamente sobre as seis camas de cada cela. Os uniformes apresentam um código de cor: laranja para os resistentes, bege para os cooperativos e branco para os presos obedientes.
A prisão, que a Anistia Internacional classificou como um gulag, já parece um museu. Há poucos prisioneiros a vista. Construída para mais de 600 suspeitos, o campo está semivazio com seus 255 presos restantes. As silhuetas de alguns poucos homens agachados no chão do lado de fora eram visíveis atrás das cercas. Não demorou muito para os oficiais deixarem claro que tirar fotos era absolutamente proibido.
O Campo V ofereceu um breve lembrete da realidade. Uma unidade da Força de Resposta Rápida (QRF, na sigla em inglês), vestindo uniformes pretos de combate e equipada com escudos de plástico, capacetes e joelheiras, entrou no prédio. Os prisioneiros se referem aos soldados como "ninjas", por causa de suas missões violentas. Mas hoje, como o oficial de imprensa nos explicou, eles estão aqui apenas para um treinamento.
Logo após a partida do grupo, "oficiais de segurança" civis apagaram todas as fotos tiradas dos "ninjas". A publicação das fotos, eles disseram, colocaria em risco a segurança nacional. Quando pressionado, o diretor reconheceu que a ação é empregada pelo menos duas vezes por semana, para lidar com os "prisioneiros que não cooperam". O percentual deles entre todos os presos, cerca de 20%, não diminuiu.
O prédio é de uma quietude fantasmagórica. Os Campos V e VI foram modelados segundo os presídios de segurança máxima dos Estados Unidos, um em Indiana e outro em Michigan. Apenas 40% das celas estão ocupadas, e tudo é reluzentemente limpo. O comandante mostrou as "salas comunitárias", mobiliadas com mesas e bancos. Por motivos de segurança, os prisioneiros também são acorrentados ao chão nessas salas.
A Convenção de Genebra em sete línguas
Nos corredores, o Exército americano demonstra sua postura cínica em relação às críticas internacionais a Guantánamo. A Convenção de Genebra - as regras básicas que regem o tratamento dos prisioneiros de guerra, que o governo do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, violou deliberadamente - está exibida em sete línguas. Até mesmo o endereço da Suprema Corte dos Estados Unidos, que não confirmou os direitos dos detidos até anos após a abertura do campo, está exibido.
A visita dos jornalistas a Guantánamo é uma visita militar padrão. Advogados, ativistas de direitos humanos, políticos - todos viram precisamente as mesmas instalações. Tudo o que vimos em Guantánamo já foi descrito por Jeffrey Toobin, na edição de abril de 2008 da revista "New Yorker". Apenas uma coisa mudou: o número de prisioneiros em greve de fome aumentou de 10, quando Toobin visitou, para 18.
Quando deixamos o Campo VI, as perguntas sobre o futuro do campo não podiam mais ser evitadas. A porta-voz mencionou várias vezes que os soldados "não desejam responder" essas perguntas políticas. Pelo menos o comandante se expressou, mesmo que indiretamente.
"Seria uma vergonha", ele disse, "se esta prisão, que atende as exigências mais rígidas e é completamente segura, fosse deixada vazia".
O repórter Matthias Gebauer, da "Spiegel Online", tem acompanhado os tribunais militares em Guantánamo desde que tiveram início e visitou o complexo de detenção na semana passada.
Tradução: George El Khouri Andolfato