domingo, 8 de abril de 2007

Bruna

Bruna



A mãe queria Brunilda, o pai italiano, que ela mal conheceu, se encantou com seus cabelos escuros e por este motivo registrou-a como Bruna. Devia ter-lhe dado o nome de Bianca, porque com o tempo a Bruna foi ficando com a pele cada vez mais clara e com os cabelos cada vez mais louros: uma Polaca - como passou a ser chamada.
Da mãe cabocla e morena ela só herdou a falta o jeito para se vestir e o costume de falar o que lhe viesse na cabeça.

O frescor da noite caia como uma garoa fina sobre a sua pele.


No céu ainda claro, as estrelas iam se acendendo devagar.


Bruna tirou o chapéu de palha, encostou a enxada num pinheiro. Arrebanhou a saia entre as pernas e sentou.


Aquela era a melhor hora do seu dia.


Pegou do bolso um canivete e se pôs a picar um pedaço de fumo
para fazer um palheiro.
Desenroscou a tampa do pequeno cantil meio verde de azinhavre que trazia preso na cintura e deu três goles da cachaça branquinha. Cigarro pronto acendeu-o e tragou com a sofreguidão de quem, morrendo de sede, toma um copo de água.

Não sabia pensar com palavras, seus pensamentos eram imagens fortes.
Paixão era entrar na mata com um facão em punho abrindo caminho sem saber pra onde ia e sem querer chegar. Era uma força inexplicável, mistura de coragem e insensatez, que a fazia seguir em frente.
Nada a assustava, nem a escuridão da lua nova, nem mesmo os aguaceiros repentinos lhe davam vontade de voltar.
Seguia em frente, ferindo as pernas nos espinheiros.
Com golpes firmes de facão cortava os galhos que a impediam prosseguir.
Deixava tudo pra trás.

Como tantas meninas do lugar onde morava, quando decidiu fugir de casa e da miséria, acompanhou um circo que passara por ali. O pretexto fora o ajudante do palhaço. Mas logo cansou da rotina de chegar às pequenas cidades, trabalhar duro na montagem do circo, para em seguida interpretar todos os dias a mesma personagem, como se o tempo tivesse parado por ali.

Na primeira oportunidade que surgiu ela foi embora seguindo uma boiada. O peão era um caboclo ruim, lhe davas uns tapas, mas era um deus montando no cavalo e em cima dela.

Agora estava ali, sentada na terra, encostada em uma árvore. O céu trocava de cores e as estrelas iam ficando cada vez mais brilhantes.

Abrindo um caminho novo acabara chegando naquela fazenda.
- O que fazia ali?

A paixão acabara e ela ainda não sabia se queria ir embora.


Ainda não sentira um novo impulso que a fizesse deixar aquele homem, quase um rapazinho, que seduzia as mulheres com seu jeito dengoso de moleque, seu andar cadenciado de malandro e o olhar de menino.

Ela sabia que não era jovem. O saber é o resultado da experiência da vida, e ela vivera intensamente. Tivera muitos ganhos e muitas perdas. Muitos e intensos lutos.

Como fora fácil exteriorizar o luto quando mais jovem!
Na morte de sua avó, a família inteira vestiu-se de preto. Esfregavam na cara dos vizinhos a dor da perda, mesmo que o sofrimento não fosse compatível com a postura.

Ela, de cara lavada e sem pintura, a pele pálida contrastando com a roupa escura, era o próprio outdoor da morte e da dor. Um anúncio público do luto. Não precisava sofrer muito porque parecia que estava sofrendo.

A passagem do tempo mudou tudo, em cada perda que teve como mulher ou pelo abandono ou pela indiferença ou por ter sido trocada por outra, ela aprendeu a disfarçar seu luto.


Quando um amor morria, ela não podia se vestir de preto, andar de cara lavada e dizer para os passantes com um ar compungido:
- Ei, me olhem, vejam como estou sofrendo!! - E esta era a maior dor. A de negar o sofrimento e sair fantasiada de feliz para dissimular o que sentia.

Aprendeu que, enquanto negasse a ausência e continuasse precisando da presença, do aconchego, do amor físico, doía muito. Mas aprendeu também que um dia parava de doer.


O moço não entendia nada disso porque vivera muito pouco e perdera menos ainda. Ele jamais se embrenhara pelo mato para abrir caminho.

Bruna não conseguia traduzir com palavras os seus sentimentos, mas tinha a consciência de que a sensação do luto era o que havia de mais humano. Não era acidental como uma pancada na cabeça ou um corte na mão. Não era uma dor física. Só passava, quando passava. Não tinha remédio.

De longe veio o som de uma voz fazendo a propaganda de um culto:
- Jesus garante a bênção!!

Aquela voz lhe colocou no chão, no meio da noite que caíra de vez.
Ela conhecia aquele pastor mesquinho e materialista. Já estivera na cama com ele. Quando ela lhe disse que também cobrava o “dízimo” foi chamada de herege.
- Filho da mãe! - tirava o dinheiro dos miseráveis com promessas de um céu inexistente e não queria pagar pelo sexo que lhe dava um pouco de céu no aqui e agora.

Bruna olhou ao seu redor e percebeu que vibrava numa outra sintonia, era como se não mais pertencesse àquele mundo aonde chegara e ainda estava.
Um arrepio de frio passou pelo seu corpo e lhe trouxe uma certeza: ela poderia até continuar por uns dias entregando o seu corpo, como se entrega um copo de água ou de pinga para quem tem sede, mas não iria demorar muito por ali. Logo algum homem, alguma coisa, alguma causa fariam que ela, de facão em punho, fosse em busca de um outro lugar. Na interminável procura por si mesma.


Escrevi este conto para o grupo Conversa de Botequim.


Nédier