segunda-feira, 2 de abril de 2007

Meu pai





Meu Pai



Pater nostro...de nós, as quatro mulheres que ele gerou apenas com a intenção de amar a minha mãe. Nunca quis filhos ou netos porque amava demais as crianças e não podia protegê-las do mundo, mas as aninhava nos braços enormes e ficava cheirando com carinho as pequeninas mãos.


Quando as crianças cresciam um pouco, era um tormento.
- Não corram, olhem a escada, vão cair, vão ser atropelados!
E para nós, suas filhas:
- O que é que vocês estão fazendo que não cuidam destas crianças?"
Implicava com uma, protegia outra, parcial, como se fosse uma delas.


Sabia ler, escrever seu nome e fazer algumas contas.

Tocava flauta e gaita de boca.


Era pintor de paredes. Eu ainda lembro com saudade o cheiro da sua roupa de algodão cru, toda respingada de tinta.


Pintou uma natureza morta, vendo um mundo sem profundidade, pois a meningite lhe cegou um olho. O quadro tem cores belíssimas: frutas sobre uma toalha de mesa. É ingênuo e puro como ele era, mas significativo.
Imagino a dificuldade que ele teve em colocar sobre uma tela, com sua visão precária, com suas mãos calejadas de operário e com pequenos pincéis, o símbolo da comida que ele e minha mãe colocavam todos os dias em nossa mesa - frutos de um trabalho árduo e mal remunerado.



O quadro, que segundo a minha irônica mãe, era de autoria de um "pintor italiano", está no hall de entrada de minha casa,


Que eu saiba ele nunca ofendeu, agrediu ou mentiu. Não bajulou, nem se corrompeu. Era um homem de bem.

Não teve sequer uma bicicleta.


As piadas e os palavrões eram distribuídos com democracia. Tratava todas as pessoas da mesma forma - da sua forma - nunca entendeu o que era uma "autoridade":
- Não eram apenas homens?

Não percebia que estava me ensinando a ser autêntica. Nunca pretendeu me dar lições.


Era cristão, porque bondoso, católico pelo batismo, mas não gostava de missas.
Ia, quase sempre a pé, do bairro do Ahu até o centro da cidade para ficar sentado, sozinho dentro da Catedral. Ele não rezava. Comungava em silêncio com a paz, na tranqüilidade sombria da luz que se filtrava nos vitrais.
Na volta comia um pastel.


Jamais me disse:- Não vá, não fale, não faça - nenhuma repreensão, nenhum questionamento, eu tinha que fazer jus à sua confiança, eu sempre fiz. Eu faço!


Não era de muitos agrados, mas me acordava de manhã para ir à escola, com uma xícara de café bem quente e um pão com lingüiça frita na chapa do fogão - que ele mesmo preparava e que tinha um o cheiro gostoso de acordar para ser feliz, que nunca mais senti.


Não me dava beijos, nem abraços, nem dinheiro. Nas épocas de chuva secava no forno meu único par de sapatos e nos domingos me levava nos campos de futebol , assistir os jogos do Operário do Ahu.





Sempre chorava ao me contar da meningite que o deixou totalmente cego, por uns tempos, porque lembrava do seu pai, ao lado da sua cama, chorando, praguejando contra Deus e dizendo, sem imaginar que ele escutava:

- Berto, figlio mio, eu prefiro que você morra...





Quando eu lhe contei que ia estudar Direito, definiu os advogados com ironia:

- “Tutti ladri"

Mas adorou o meu "Diploma de Burro" quando passei no vestibular.


Ao dançarmos a valsa na minha formatura, ele estava tão feliz de smoking alugado, que mais parecia uma debutante no primeiro baile a rigor.


A gente não tinha isso de dizer: - Eu te amo. - porque era frescura.
Mas eu te amo, meu pai e encontro você todos os dias quando me olho no espelho e nos reconhecemos...



Meu pai que me deu a vida, amando minha mãe, acabou morrendo nos meus braços.


Instantes antes de morrer ele saiu do coma e com um olhar de lucidez e indagação me perguntou:
- O que é tudo isso? - e num silêncio igual eu respondi:
- Pode ir sem medo, logo você vai saber ... Eu acho que vai ser melhor...
Então ele parou de respirar.
Eu nunca pensei que morrer

fosse tão simples.










Foto:

- Eu e meu pai dançando a valsa no baile de minha colação de grau em Direito.





PS.:

- Escrevi este texto há muitos anos num Dia dos Pais.