terça-feira, 3 de abril de 2007

A nona


Joana

Na minha certidão de nascimento o nome de minha vó paterna consta como Itália, mas este era seu apelido.

O seu nome era Joana D'Alagassa mas chamavam-na de Itália, nome do país onde nasceu. Ela chegou no Brasil, com a família, ainda menina em um navio que trazia imigrantes italianos da região do Vêneto. Meu avô, já moço, veio no mesmo navio, mas eles só se conheceram aqui, no bairro onde nasci e continuo vivendo.

Casaram e tiveram doze filhos.
Minha vó era pequena. Usava os cabelos brancos e brilhantes amarrados num coque na nuca.
Tinha olhos azuis, muito claros, cheios de luz

Era linda!
A expressão doce e tranqüila disfarçava um inferno interior.

Minha avó não dormia e às vezes se perdia em seu atormentado mundo emocional ao qual nunca tivemos acesso. Apenas o médico e duas de suas filhas entravam naquele quarto onde ela ficava trancada durante semanas.

A criança insegura que fui ainda conserva dentro do meu peito as imagens sombrias daquela casa alegre e barulhenta mergulhada, sem que eu soubesse o motivo, numa bruma triste e silenciosa . Todos falavam baixo e pisavam leve:

- A nona está doente.

Quando menos se esperava, ela vinha à tona, com a mesma expressão de bondade e de doçura que costumava aparentar e retomava sua vida normalmente.

Não convivi com a família de minha avó.

Uma das irmãs de meu pai, uma tia muito amada, me contava que os irmãos de minha avó eram lindos e anti-convencionais .

Dois deles se suicidaram, afogando-se em um poço.
A nona Itália usava vestidos compridos. Eu nunca a vi sem um avental de tecido quadriculado. Do bolso do avental saíam balas de caramelo, que ela colocava disfarçadamente em nossas mãos.

Não lembro de vê-la com um vestido ou avental novos, nem mesmo nos dias de festa . Em minha lembrança ela permanece ao lado do fogão tomando café preto, numa caneca que carregava sobre o braço dobrado,

acomodada na curva interna do cotovelo.
Fecho os olhos e vejo-a nos domingos servindo a grande mesa rodeada pelos meus tios e tantos outros convidados
de última hora .
Jamais vou sentir de novo o sabor do risoto que ela preparava. Meu paladar, tal qual um ouvido absoluto que rejeita acordes atonais, saberia reconhecer a aquela perfeita sinfonia culinária que ela preparava em um grande caldeirão.
Ela cozinhava as galinhas inteiras e depois de desfiadas, refogava na manteiga. A magia do tempero feita de pitadinhas de sal e de, sabe-se lá, que outros condimentos, dava ao risoto um sabor inigualável.
Eu levava meu pai em todos os restaurantes italianos que inauguravam em Curitiba. Quando o garçom colocava o risoto sobre a mesa, lá íamos os dois, irmanados numa mesma busca à procura de um tempo que nunca se perdeu dentro de nós.

Durante toda a vida, meu pai, do fundo dos pesadelos que oprimiam o seu sono, chamava pela sua Mama.
Cresci ouvindo-o chamar pela sua mãe, todas as benditas noites que passei na casa paterna.


- Mama, mama!! foram as suas últimas palavras. Ele as proferiu antes

de entrar em coma.

Quando a voz aflita da criança perdida no corpo adulto
do meu pai me acordava de madrugada, eu assumia um pouco os seus temores.


Era como se nos encontrássemos na mesma noite escura que cada um de nós trazia dentro de si mesmo.






Nédier