O sobrenome da minha família paterna é uma combinação de Brusa que vem de bruciare: verbo queimar e molino: moinho.
Os sobrenomes, desde que passaram a ser usados para distinguir os clãs, eram indicativos ou da profissão que exerciam seus componentes ou de uma outra característica do grupo familiar. Baseada nisso, eu penso que os Bruciamolino ou foram moleiros, cujo moinho queimou ou incendiavam moinhos por "vendeta".
Eu, como que me criei vendo-os brigar em bailes, em todo o santo jogo de futebol ou em torno das rinhas com seus galos ensangüentados, não consigo imaginá-los descendentes de pacíficos camponeses moendo cereais para viver.
Eram músicos natos, meu pai tocava flauta e gaita de boca. O tio Ricardo acordeão e os demais, violão ou qualquer outro instrumento do qual pudessem tirar um som.
O meu Tio Zilo, era sapateiro. Recordo do cheiro de couro do seu avental e da banqueta onde sentava para trabalhar. Os lábios cerrados prendiam as tachinhas que ele pregava, uma a uma, nos sapatos calçados numa forma de ferro em forma de pé.
Ele era um italiano alto, de cabelos muito escuros, porém eu não sei se a expressão irônica de seus olhos azuis era maliciosa ou apenas refletia a sua pureza interior. Falava pouco, porém a sabedoria do seu olhar dizia que tudo era cômico e passageiro.
A convivência pacífica da “famiglia” era uma loucura generalizada. Todos gritavam com todos: o Amor é mesmo um sentimento catastrófico! Muitas vezes, no meio da balbúrdia, eu procurava o tio Zilo com os olhos e num simples olhar ele me traduzia o caos. Com um sorriso contido iluminando seu rosto, ele confirmava:
- É assim que nós somos - não é engraçado?
Ele nunca casou.
No canto de uma sala mergulhada em sombras ficava um grande piano de cauda, as mãos enormes e calejadas do meu tio percorriam o teclado fazendo vibrar no ar a beleza e a harmonia de seus acordes.O piano era das filhas da minha tia Marica (chamava-se Cecília). Minha tia casou com um gerente do Banco do Brasil. No interior, onde ela morava, este era um cargo tão importante como o de prefeito ou do padre, o que explica a presença de um piano naquela casa, uma vez que minhas primas vinham estudar em Curitiba. Porém, se elas tinham que aprender tocar piano, como todas as mocinhas bem-nascidas daquela época, meu tio Zilo já nascera sabendo...
A sala do piano tinha enormes janelas fechadas, alguns quadros de pintura a óleo, uma bacia e um jarro de porcelana sobre uma cômoda e um ar transitório de abandono. Todas as portas dos quartos de dormir se abriam para ela.
Num destes quartos tinha um alçapão que se abria para um porão escuro. Uma escada bem precária de madeira descia até o chão de terra. Uma vez eu vi, lá de cima, um cachorro louco. Como ninguém teve coragem de matá-lo, eles prenderam-no lá embaixo até morrer.
O meu tio Emílio ficara surdo, ainda mocinho por causa da mesma meningite que apagou do rosto do meu pai um dos seus olhos azuis.
O tio Emílio não podia beber porque ficava enlouquecido e quando ele “surtava” depois de ter tomado todas, a famíglia se reunia para contê-lo.Lembro daquele italiano enorme, de cabelos encaracolados, amarrado em uma cadeira pelos seus irmãos, para não se machucar, nem machucar ninguém.Ele, que já falava aos berros, quando sóbrio, por ser surdo, ficava urrando feito um louco em lua cheia.
Sua mulher pequenina e quase cega (porque apertou uma espinha perto do olho, viu?) ficava camuflada entre as cortinas, enquanto o marido, imobilizado, gritava palavrões para os irmãos que o rodeavam.
Todos falavam sem parar e ao mesmo tempo.A criança assustada que eu era, ficava se perguntando se não era muito mais simples abrirem o alçapão e jogarem ele lá em baixo, até ficar calminho.
Nédier
Foto: Tio Emílio, tia Terezinha, a Lizete (que morou em minha casa e ainda hoje reclama o quanto eu era chorona)e a Leoni. Mais tarde nasceria - no mesmo ano que eu - a Oneide.
Continua